Após quase desaparecerem das escolas, as letras cursivas estão de volta
Tudo em nome de evidentes benefícios sociais e cognitivos
Coube aos sumérios, há mais de 4 000 anos, onde hoje é o Iraque e foi a Mesopotâmia, os primeiros traços da escrita cuneiforme, por meio de estiletes aplicados a blocos de argila. Desde então, a capacidade de usar as mãos para fazer registros vem sendo capítulo seminal da história da humanidade.
A escrita cursiva é o modo mais elegante de deixar mensagens para a posteridade. No entanto, com a primazia avassaladora das telas (leia mais na pág. 70), praticamente sumiu dos currículos escolares — estrago que nem mesmo a invenção da prensa, por Gutenberg, no século XV, foi capaz de produzir. Agora, em fascinante pêndulo da civilização, há um movimento em sentido contrário, a retomada do manuscrito como ferramenta de educação e desenvolvimento cognitivo.
No início do ano, a Califórnia voltou a determinar o aprendizado da letra cursiva para crianças do 1º ao 6º ano. Outros vinte estados tem iniciativas semelhantes. No Brasil, a Base Nacional Comum Curricular preconiza o ensino da cursiva nos primeiros anos do ensino fundamental, depois do aprendizado da chamada letra bastão. São passos pequenos, mas fundamentais, aceno ao passado de olho no futuro.
Há ótimos motivos para a retomada do antigo hábito. “Ao segurar um lápis ou uma caneta para escrever, há um planejamento visual, diversos movimentos corporais e a necessidade de aplicação de mais ou menos força”, diz o neuropediatra Carlos Takeuchi, coordenador do departamento de neurologia do Hospital Infantil Sabará. “Todos esses pequenos gestos resultam em um melhor desenvolvimento da psicomotricidade, além de aprendizados mais subjetivos, como criatividade e paciência.”
Um estudo recente preparado pela Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia identificou a relevância do escrever em vez de teclar: a letra cursiva estimula regiões do cérebro que não são ativadas pela digitação. Parece, portanto, não haver dúvida: o papel como plataforma promove o conhecimento. “A regra é simples”, diz Paulo Breinis, neuropediatra e professor de neurologia infantil da Faculdade de Medicina do ABC. “Para uma criança em fase de aprendizado, quanto mais processos forem estimulados, maiores serão os resultados. É sempre muito mais rico, do ponto de vista cognitivo, que a criança aprenda a escrever a letra ‘b’, por exemplo, e saiba como diferenciar sua escrita da letra ‘d’, do que apenas aprender a digitar essas letras em uma tela.”
É raciocínio simples — mas eis aí a beleza e importância das posturas banais. Seja para conseguir ler documentos do passado, sem os quais não caminhamos, seja para compreender as cartas escritas por avós e bisavós, sem os quais nada seríamos. Atento, o professor de história Vinícius Andrade, da rede municipal do Rio de Janeiro, costuma levar fontes manuscritas de textos antigos para as turmas do 7º ano, de 11 e 12 anos. “Eles sempre acham que não vão conseguir ler”, brinca. “E ficam encantados quando conseguem.” Muito mais do que mera nostalgia — e nada de condenar a tecnologia, por óbvio —, a sobrevivência da letra cursiva é ponte fundamental e bonita entre gerações.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879