A maioria não passa de ano: o sinal de alerta no ensino a distância
Alunos superam pela primeira vez os universitários do modo presencial, mas a qualidade média dos cursos on-line vem deixando a desejar
Lá se vão quase três décadas desde que o Ministério da Educação autorizou o primeiro curso superior remoto no Brasil, o de pedagogia na Universidade Federal de Mato Grosso, inaugurando ali um modelo calcado nas ferramentas tecnológicas em ascensão, capaz de romper com o monopólio da lousa e do giz. A expansão da modalidade acabou servindo de bem-vinda alavanca para que muita gente ingressasse no rol do ensino superior — algo para lá de necessário dado que, até hoje, os brasileiros aparecem no pelotão de trás, com apenas um quinto dos jovens em carteiras universitárias versus os pelo menos 50% das nações mais desenvolvidas. Eis que pela primeira vez os que tentam o tão almejado diploma sem uma rotina no campus, assistindo às aulas em notebooks ou celulares, ultrapassaram os que seguem no tradicional modo presencial, alcançando 5,1 milhões de matrículas — um marco assinalado no último Censo da Educação que reforça a ideia, também disseminada em outros países, de que não há uma única via para avançar no saber.
Desta vez, porém, a acelerada evolução do chamado ensino a distância, EaD, acendeu um sinal de alerta no MEC e no próprio mercado, já que veio acompanhada de uma queda na qualidade. Na última década, enquanto a oferta de graduações virtuais cravou extraordinário crescimento de 728%, as médias de quem se forma pela trilha digital não apenas caíram, ficando no sofrível patamar de 39 em uma escala que vai a 100, como se distanciaram de quem estuda no tête-à-tête com o professor (veja os gráficos).
Um mergulho mais fundo nos dados feito pela consultoria educacional Carta Consulta, a pedido de VEJA, observou a curva da excelência nas dez mais procuradas carreiras oferecidas a distância, com base no resultado do Enade, um termômetro do nível dos formandos. Seis áreas — pedagogia, administração, sistemas de informação, educação física, contabilidade e logística — registraram uma piora significativa, nutrição se manteve estável e enfermagem e recursos humanos revelaram leve melhora, embora sigam oscilando em um patamar ainda muito baixo (só farmácia ficou de fora do levantamento por inconsistência na série histórica). “O desempenho está aquém do desejável e preocupa pelo nível dos profissionais que chegam ao mercado”, afirma Marcos Roberto Rosa, especialista da Carta Consulta.
A propagação do ensino remoto no país deu um salto notável em 2017, quando o MEC cedeu à pressão do setor privado e flexibilizou as regras para a abertura de cursos. O processo, que levava cerca de oito anos, foi então encurtado e várias exigências, como a autorização para criação de polos presenciais, onde ocorrem provas e atividades obrigatórias in loco, deixaram de existir. “A flexibilização pela qual lutamos foi como um tiro no pé”, admite o diretor de uma das maiores empresas do ramo. Com a burocracia menos engessada, tornou-se mais atrativo apostar as fichas nesse nicho promissor, e justamente aí verificou-se uma avalanche de cursos de EaD, derrubando ao mesmo tempo o preço e a qualidade, difícil de ser fiscalizada na atual escala do negócio.
Os grandes prejudicados foram os grupos educacionais já bem estabelecidos e com expertise acumulada, que passaram a duelar com uma concorrência que, às vezes, cobra 50, 100 reais de mensalidade, não raro incompatível com o mínimo necessário para garantir um bom ensino. Por isso, passaram elas próprias a pedir ao governo federal padrões mais consistentes de avaliação e até a denunciar eventuais práticas irregulares. “É preciso encontrar um ponto de equilíbrio: preservar a excelência e métricas rigorosas sem inviabilizar a expansão e a inovação”, pondera Janguiê Diniz, presidente da Associação de Mantenedoras de Ensino Superior. Uma questão sobre a qual vale mesmo se debruçar, já que afeta diretamente a vida de estudantes como Guilherme Ramos, 23 anos, que só consegue seguir adiante com o curso de comércio exterior na carioca Veiga de Almeida porque, remotamente, alia bem trabalho e estudo — situação, aliás, semelhante à de uma fatia majoritária na modalidade EaD. “Assim posso assistir no meu tempo às aulas que são gravadas e organizo melhor a semana”, diz.
A explosão de matrículas no ensino a distância, que ganhou gás na pandemia, ensejou no MEC um debate que levou à publicação de um novo marco regulatório do EaD. As normas, que começam a valer em 2026, miram um tópico sensível das aulas remotas: a interação entre mestres e alunos, que será incentivada com mais atividades presenciais e substituição de uma porção dos vídeos gravados por lições ao vivo, abrindo espaço para perguntas e discussões com o objetivo de conferir maior riqueza ao aprendizado. “O saldo é positivo. Muitos players não entregam qualidade e, com essas mudanças, vão deixar de existir”, avalia Rodolfo Guimarães, vice-presidente na Estácio.
Depois de se ponderarem argumentos de um lado e de outro, concluiu-se ainda que graduações do setor da saúde e as licenciaturas, por suas particularidades, irão migrar para o regime semipresencial, em que metade da carga horária se desenrola entre paredes de tijolos. Mas como nada é simples aí, já surgiu um temor de que, especialmente em locais mais afastados, a exigência do MEC faça a oferta de cursos encolher nessas áreas-chave. “Não tem como isso se sustentar em pequenos municípios”, diz Juliano Griebeler, presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares. Nos bastidores do MEC, já se fala em adaptações no texto para evitar uma possível debandada de aspirantes a professor e enfermeiro — iniciativa salutar, desde que nada comprometa a excelência.
Enquanto o tema ferve nas esferas de poder, os jovens tentam como podem obter o diploma, um balizador da renda, segundo enfatiza um estudo da Fundação Getulio Vargas: quem possui o prestigiado canudo recebe em média 126% mais do que os que pararam no ensino médio. A tecnologia tem o mérito de facilitar o acesso à graduação, mas impõe desafios variados para garantir o que importa — a transmissão de conhecimento de nível elevado, aquele que prepara o olhar para a complexidade moderna. O relato de alunos que cumprem jornadas remotas de estudo mostra quão difícil é manter o ritmo. “Ainda que tenha facilidade para estudar sozinha, senti dificuldade em criar uma rotina e me conectar com professores e colegas”, conta Anna May Atkinson, 27 anos, que faz administração na Universidade Católica de Petrópolis, no Rio de Janeiro.
A saída, dizem os especialistas, está em aprimorar o modelo de maneira a atiçar a curiosidade e manter a turma engajada. “É fundamental desenvolver estratégias específicas para o ensino digital, com o uso de plataformas que monitorem o progresso e ofereçam respostas rápidas ao aluno”, pontua Maria Helena Guimarães, ex-ministra da Educação. A permanência na sala de aula virtual persiste como um obstáculo a ser superado: 24% abandonam o curso antes da conclusão, o dobro do observado no formato presencial. “Nenhum país com um bom sistema de ensino deixa de lado o EaD, mas, para funcionar, isso requer investimentos e deve obedecer a um conjunto de regras que zele pela excelência”, afirma Claudia Costin, especialista em educação. Está na hora, portanto, de fazer a lição de casa. Aprimorar a regulação ajudará o mercado a elevar a nota média, passando de ano no quesito qualidade.
Publicado em VEJA de 17 de outubro de 2025, edição nº 2966
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