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Com problemas para obter e consolidar dados, Guedes caminha no escuro

O governo planeja políticas a partir de informações parciais de renda e emprego, o que pode comprometer as medidas para conter os efeitos do coronavírus

Por Victor Irajá, Larissa Quintino Atualizado em 10 abr 2020, 10h53 - Publicado em 10 abr 2020, 06h00

Em uma democracia consolidada, dados são instrumentos fundamentais não apenas pela transparência, mas também para embasar a tomada de decisões de políticas públicas. Durante a pandemia do novo coronavírus, esses números são ainda mais importantes, pois partem deles as diretrizes para ações, sejam de combate à doença em si, sejam para mitigar seus danos econômicos. O que se vê no Brasil de hoje, infelizmente, passa ao largo dessas premissas básicas. Com estatísticas desatualizadas e parciais, a própria concepção das ações públicas é posta em xeque.

Um exemplo claro da desorganização é o auxílio emergencial de 600 reais para trabalhadores informais — o coronavoucher —, que institui uma renda básica para aproximadamente 54 milhões de brasileiros. O governo, por meio da Caixa Econômica Federal, correu para estruturar um sistema em que os interessados possam se autodeclarar como candidatos ao programa, já que não há meio eficaz de saber exatamente quem são eles. Os ministérios da Economia e da Cidadania não sabem ao certo se são 15 milhões ou 20 milhões o número de informais que vivem à margem de qualquer banco de dados do governo. Os fatos se resumem à necessidade de um monumental contingente de brasileiros ter de acessar um sistema on-line para atestar sua existência e sua necessidade de amparo público. Mesmo com a agilidade e a rapidez de colocar no ar a ferramenta digital em pouco menos de uma semana, não há como dizer se os 98 bilhões de reais são suficientes para “não deixar nenhum brasileiro para trás”, como costuma repetir o presidente Jair Bolsonaro em seus pronunciamentos.

A situação mostra a fragilidade dos dados que o governo possui em mãos a respeito da sociedade brasileira. O último raio-X completo do Brasil foi feito em 2010 — e o desvão de informações promete aumentar. Em decorrência do caos provocado pela pandemia, a realização do Censo marcado para este ano foi adiada para 2021. Feito a cada década, o levantamento comporta informações robustas relativas a mais de 70 milhões de domicílios, com informações sobre moradia, condição de renda e emprego. A cada mês, essa base monumental é atualizada por meio da Pnad Contínua, pesquisa que traz recortes atualizados sobre condições de emprego e habitação por consulta amostral aferida pelos pesquisadores em 211 344 domicílios. Em fevereiro, segundo a pesquisa, o país tinha 12,3 milhões de desempregados, 32,5 milhões de trabalhadores com carteira assinada e 38 milhões de trabalhadores informais. O levantamento de março, que será divulgado no fim do mês, foi feito por telefone, o que diminui sensivelmente a qualidade da aferição. O Caged, que reúne dados sobre contratações, demissões e salários, não tem nenhum número oficial registrado no ano de 2020. As divulgações de janeiro e fevereiro não ocorreram. A justificativa é que os empresários não mandaram informações atualizadas, o que geraria distorções quanto às condições reais do emprego. É grave, principalmente em um momento em que o Executivo libera 51 bilhões de reais para bancar auxílios para trabalhadores com salários reduzidos ou cortados pelas empresas. Não há como saber, hoje, detalhes sobre o mercado formal do Brasil. “Estatísticas são importantes para estabelecer políticas e avaliar sua eficácia. Não estamos totalmente no escuro porque há a Pnad, mas o Caged é fundamental no retrato do mercado de trabalho”, diz Helio Zylberstajn, economista da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe).

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Sem o cadastro, a Secretaria de Previdência e Trabalho utiliza dados parciais enviados pelas empresas para sustentar suas estimativas. Para se ter noção do tamanho das incertezas em que o país está mergulhado, o secretário da Fazenda, Waldery Rodrigues, citou, na semana passada, um estudo do Banco Central que mostrava que o coronavírus se alastra mais rápido no Brasil do que em outros países. O estudo, contudo, não existe. Em ofício enviado ao secretário, o diretor de relacionamento do BC, Maurício Moura, esclareceu: “Venho informar que esta autarquia não elaborou estudo, modelo ou parecer que contenha estatísticas sobre a velocidade do contágio do coronavírus”.

Estudos duvidosos e dados precários preocupam no cenário em que o principal órgão de pesquisa do país, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mergulhou no ocaso. Mesmo antes da pandemia, o recenseamento já sofrera corte de 87% no orçamento e redução no número de perguntas, de 112 para 76. Em fevereiro do ano passado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, criticou a quantidade de questões do levantamento. “O Censo de países ricos tem dez perguntas. O brasileiro tem 150. E o Censo do Burundi, 360”, ironizou. Instituições correlatas ao IBGE na Venezuela e Argentina passaram por situação parecida e atualmente têm a qualidade de suas informações posta em dúvida por órgãos internacionais. O governo venezuelano passou quatro anos sem publicar dados oficiais sobre a economia do país. Na Argentina, durante o governo de Cristina Kirchner, a inflação oficial era uma incógnita. No Brasil, a situação ainda está longe disso. Mas é preciso um maior compromisso com a produção de dados de qualidade, em nome da credibilidade — e da falta que eles fazem para estruturar ações bem-sucedidas.

Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682

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