VEJA (agosto de 2002): Antonio Candido, o radical de classe média
Como Antonio Candido, o monstro sagrado da crítica literária, se tornou uma unanimidade
Sobre Guimarães Rosa, em 1946
“A província é menos uma região do Brasil do que uma região da arte, com detalhes e locuções e vocabulário e geografia cosidos de maneira por vezes quase irreal, tamanha é a concentração com que trabalha o autor. Por isso sustento, e sustentarei, mesmo que provem meu erro, que Sagarana não é um livro regional como os outros, porque não existe região igual à sua, criada livremente pelo autor com elementos caçados analiticamente e, depois, sintetizados na ecologia belíssima das suas histórias.”
Sobre João Cabral de Melo Neto, em 1943
“Pedra do Sono é a obra de um poeta extremamente consciente. Os poemas que o compõem são, é o termo, construídos com rigor, dispondo-se os seus elementos segundo um critério seletivo, em que se nota a ordenação vigorosa que o poeta imprime ao material que lhe fornece a sensibilidade. Disso já se depreendem as duas características principais desses poemas, tomados em si: hermetismo e valorização por assim dizer plástica da palavra.”
Sobre Clarice Lispector, em 1943
“Tive verdadeiro choque ao ler o romance diferente que é Perto do Coração Selvagem. Esse romance é uma tentativa impressionante de levar a nossa língua canhestra para domínios pouco explorados, forçando-a a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério, para o qual, se sente, a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito, apto a nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente.”
O nome de Antonio Candido vem cercado de uma aura de reverência. Aos 84 anos, ele é tido como o maior crítico literário, e talvez o maior intelectual vivo do Brasil. Esse renome foi construído em múltiplas frentes. Na imprensa, o crítico descobriu autores que depois comporiam o primeiro time da literatura nacional. Na universidade, o professor formou sucessivas gerações de alunos. Candido é ainda uma referência política. Esteve presente à fundação de dois partidos: o Partido Socialista Brasileiro (PSB), em 1947, e o Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980. Nesta semana, o lançamento de uma caixa com dois livros provavelmente servirá de ensejo para que se reafirme a unanimidade em torno dele. Bibliografia de Antonio Candido e Textos de Intervenção (Livraria Duas Cidades/Editora 34; 271 e 391 páginas; 54 reais) foram ambos organizados pelo pesquisador Vinicius Dantas. O primeiro é fruto de um levantamento exaustivo de toda a produção do autor. O segundo é uma coletânea variada, que vai dos anos 40 aos 90. Ela inclui ensaios, entrevistas, palestras e prefácios que nunca haviam sido recolhidos em livro. Abrange desde temas literários até memórias e questões políticas.
Fosse o autor qualquer outro, em idade assim avançada, e uma caixa como essa poderia receber o rótulo de homenagem. No caso de Antonio Candido, a palavra deverá ser evitada. Avesso ao foguetório e a tratamentos por demais reverentes, Candido se fez conhecido pela modéstia. O que não significa que ele se tenha mantido alheio à construção de sua imagem pública. A modéstia foi apenas um dos instrumentos pelos quais ele administrou — com inegável zelo — essa construção. Outro caminho foi tornar-se uma personalidade de difícil acesso, do tipo que odeia dar entrevistas. Por isso, quando as dá, elas viram um acontecimento que repercute nas hostes literárias. Candido também leva a ferro e fogo a sua imagem de homem austero. Embora na intimidade goste de entoar árias de óperas — a sua preferida é Tosca, de Giacomo Puccini — e de improvisar alguns passos do cururu, uma dança caipira que conheceu em pesquisas de campo para sua tese de sociologia, Os Parceiros do Rio Bonito (1954), ele já aos 40 anos se comportava como alguém bem mais velho.
Assim como no trato pessoal, ele é de uma polidez irretocável em seus escritos. Trata-se de um intelectual de restrições ponderadas, não de pauladas mortíferas. “Antonio Candido intervém energicamente, mas as pessoas às vezes não notam, pois ele sempre é muito educado”, diz um de seus discípulos diletos, Roberto Schwarz. Graças a esse mecanismo, foi capaz de evitar a formação de qualquer inimizade sanguínea. Pelo contrário, acabou conquistando a admiração até de eventuais opositores. Foi o caso de Oswald de Andrade, que, na década de 40, apelidou Candido e seus companheiros da revista Clima de “chato-boys” — por considerá-los por demais livrescos, rapazes do tipo que leu muito e viveu pouco. O crítico nunca acusou a alfinetada. Anos depois, acabaria convidado pelo escritor modernista para fazer o prefácio de seu livro de memórias. Para adaptar uma expressão criada pelo próprio Candido, num texto sobre o amigo Sérgio Buarque de Holanda, pode-se dizer que o crítico encarna um certo radicalismo de classe média. Suas idéias são ousadas, mas sempre envoltas numa capa de respeitabilidade.
A reputação de Antonio Candido — carioca de nascimento, mineiro de criação e paulista por adoção — começou a ser erigida nos anos 40, quando ele se tornou assíduo comentarista de literatura nas páginas de jornais como o Diário de S. Paulo e a Folha da Manhã. A segunda seção da coletânea Textos de Intervenção, intitulada “Argumentos”, inclui amostras da sensibilidade com que Candido praticou a crítica jornalística. Hoje, por exemplo, falar do “rigor” de João Cabral de Melo Neto é repetir um juízo consagrado, do tipo que se lê em qualquer apostila de cursinho. Ainda não era assim em 1942, quando apareceu Pedra do Sono, primeiro livro do poeta pernambucano. O crítico que no ano seguinte publicou um artigo dizendo que aqueles poemas eram “construídos com rigor” não recorreu a um lugar-comum. Estava fazendo uma descoberta. Até o fim da década de 50, Candido foi assíduo nessas críticas de rodapé. Quando optou definitivamente pelo ensino universitário de literatura, deixando a sociologia em que também havia atuado, diminuiu o ritmo das colaborações jornalísticas — e também deixou de considerar uma obrigação acompanhar passo a passo a produção contemporânea, algo para que a Bibliografia aponta. A refrega jornalística, ao que parece, não condizia com suas novas ambições acadêmicas. Sua obra máxima, o tratado Formação da Literatura Brasileira, foi publicada em 1959.
Foi na carreira acadêmica, em particular na Universidade de São Paulo (USP), que Candido conquistou sua unanimidade. Professor diligente, sempre trazia suas aulas por escrito e não gostava de ser interrompido em classe. Mais do que alunos, pretendeu formar discípulos. Sua capacidade de articulação tem um bom exemplo no modo como coordenou o Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), entre 1976 e 1978. Em plena ditadura militar, Candido chamou professores de sua confiança, como José Miguel Wisnik e João Luís Lafetá, e estruturou a instituição de forma que ela sofresse o mínimo possível caso ocorressem expurgos ditados por razões ideológicas. Candido agiu segundo uma verdadeira lógica de guerra. “Chegou a distribuir cópias de um tratado do general De Gaulle sobre táticas militares”, relembra uma professora que atuou na Unicamp nesse período.
Seu comprometimento com posições de esquerda ganha nova luz com alguns artigos dos anos 40 e 50 coligidos em Textos de Intervenção. Militando no PSB, Candido atacava ao mesmo tempo o conservadorismo da UDN, o populismo do PTB e o stalinismo do PCB. Alguns dos textos que escreveu no começo dos anos 40 chegaram a servir de diretrizes partidárias para os socialistas. Hoje, Candido dedica boa parte de sua energia ao PT. Segundo Luiz Dulci, secretário-geral nacional do partido e presidente da Fundação Perseu Abramo, quando lhe pedem para participar de determinada atividade, Candido costuma perguntar: “É tarefa partidária?”. Se a resposta é positiva, ele não se recusa. Esquerdista histórico, nunca se declarou marxista. Mas utiliza o instrumental analítico do marxismo na crítica literária. Candido defende um certo socialismo democrático — expressão política ideal, ao que tudo indica, para o radicalismo de classe média. Também no campo político sua proverbial polidez se faz valer. Até onde se sabe, o professor petista nunca expressou nenhum desencanto com o mais célebre de seus alunos: o tucano Fernando Henrique Cardoso.
Sobre Guimarães Rosa, em 1946
“A província é menos uma região do Brasil do que uma região da arte, com detalhes e locuções e vocabulário e geografia cosidos de maneira por vezes quase irreal, tamanha é a concentração com que trabalha o autor. Por isso sustento, e sustentarei, mesmo que provem meu erro, que Sagarana não é um livro regional como os outros, porque não existe região igual à sua, criada livremente pelo autor com elementos caçados analiticamente e, depois, sintetizados na ecologia belíssima das suas histórias.”
Sobre João Cabral de Melo Neto, em 1943
“Pedra do Sono é a obra de um poeta extremamente consciente. Os poemas que o compõem são, é o termo, construídos com rigor, dispondo-se os seus elementos segundo um critério seletivo, em que se nota a ordenação vigorosa que o poeta imprime ao material que lhe fornece a sensibilidade. Disso já se depreendem as duas características principais desses poemas, tomados em si: hermetismo e valorização por assim dizer plástica da palavra.”
Sobre Clarice Lispector, em 1943
“Tive verdadeiro choque ao ler o romance diferente que é Perto do Coração Selvagem. Esse romance é uma tentativa impressionante de levar a nossa língua canhestra para domínios pouco explorados, forçando-a a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério, para o qual, se sente, a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito, apto a nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente.”