Ainda ontem, com 94 anos completados em maio, Charles Aznavour rodava o mundo para manter viva a velha chanson francesa. Com sua dicção perfeita, associada a uma voz aveludada que misturava os timbres de um tenor e de um barítono, celebrava as cicatrizes de amores, abria e fechava as feridas sentimentais. Foram 72 anos de carreira, mais de 100 milhões de álbuns vendidos e estimadas 1 400 composições de sua autoria ou gravadas. Dada a longevidade — “Nós, armênios, vivemos muito”, ele brincava —, Aznavour cantou o século XX como nenhum outro artista. Em La Bohème, de 1965, narrou a história de um pintor que se lembra com saudade da juventude no bairro parisiense de Montmartre. Em Hier Encore, outro clássico, de 1955, que teve pelo menos noventa regravações, entoou o choro de um idoso que lastima ter perdido o tempo de seus 20 anos. Com Après l’Amour, também de 1955, comprou briga por meio de uma balada que seria proibida nas rádios francesas, com as revelações de um casal depois do sexo. Eram relatos de mulheres e homens comuns como ele. Batizado de Shahnourth Varenag Aznavourian, em Paris, de pais nascidos na Armênia, tinha 1,60 metro de altura, era feioso e desajeitado — tudo espetacularmente compensado pela arte de compor e pelo vozeirão que o faziam alto, bonito e charmoso.
“Nós, armênios, vivemos muito. Vou chegar aos 100 anos e trabalharei até os 90.”
“Charles Aznavour era profundamente francês, profundamente ligado às suas raízes armênias”, disse o presidente da França, Emmanuel Macron. “Ele acompanhou as alegrias e as dores de três gerações. Suas obras-primas, o tom de sua voz, seu brilho único sobreviverão a ele por muito tempo.” Houve cantores franceses inigualáveis antes de Aznavour. Houve Edith Piaf (1915-1963), de quem ele foi motorista e secretário, e ainda autor de diversas canções (sempre negou ter sido amante de La Môme). Houve Charles Trenet (1913-2001), Maurice Chevalier (1888-1972) e Yves Montand (1921-1991). Mas nenhum deles teve o dom de acariciar o tempo como Aznavour, que, para além da ribalta e dos discos, participou de oitenta filmes, porque suas letras soavam como roteiro. Nas telas, seu grande sucesso foi Atirem no Pianista, dirigido por François Truffaut, de 1960. Em maio, Aznavour quebrara um braço. Em 17 de setembro, fez um show no Japão. Tinha apresentações marcadas para o Brasil em 2019. Morreu, no dia 1º, em sua casa de Mouriès, no sudoeste da França, de causas não reveladas. Não atingiu seu objetivo, “chegar aos 100 anos”, mas cumpriu com folga outro, “trabalhar até os 90”, porque ainda ontem tinha 20 anos.
Publicado em VEJA de 10 de outubro de 2018, edição nº 2603