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Um quadro crítico: a guerra familiar que ameaça legado de Tarsila do Amaral

A descoberta de uma suposta nova obra expõe uma disputa que envolve laudos científicos, bate-boca e pode ir aos tribunais

Por Amanda Capuano Atualizado em 30 ago 2024, 11h29 - Publicado em 30 ago 2024, 06h00

Em seus últimos anos de vida, Tarsila do Amaral (1886-1973) passou por situações difíceis. Após uma cirurgia malsucedida na coluna, a pintora que sintetizou o modernismo nacional viu-se presa a uma cadeira de rodas. Em seguida, sua única filha, Ana Dulce, morreu em função de uma diabetes severa. Tarsila então se apegou ao espiritismo, ficou amiga de Chico Xavier e vendeu quadros para ajudar nas causas do médium. Ao morrer, com 86 anos, padecia de depressão. O epílogo trágico, claro, não foi capaz de turvar o brilho de uma obra extraordinária. Ao contrário: desde que o ícone antropofágico Abaporu foi arrematado pelo argentino Eduardo Costantini, em 1995, num lance de repercussão internacional, Tarsila não parou de se valorizar — e atingiu o merecido status de popstar das artes em anos recentes, com a venda milionária de quadros como A Lua (1928), pelo qual o MoMA de Nova York pagou uma cifra estimada em 20 milhões de dólares. A consagração final junto às massas veio em 2019, quando uma mostra no Masp atraiu filas impressionantes e multidões disputaram com furor a chance de fazer uma selfie com o Abaporu.

Com tanta festa em torno de Tarsila, era de esperar que o aparecimento de um suposto quadro perdido da artista causasse comemoração. Infelizmente, porém, não foi nada alvissareiro o que se viu desde a descoberta da obra intitulada Paisagem 1925, que teria sido pintada por Tarsila naquele mesmo ano, na histórica fase Pau Brasil. Nas últimas semanas, o debate sobre a autenticidade do quadro expôs de forma retumbante algo que só se comentava à boca pequena no mundo das artes: os herdeiros de Tarsila travam uma guerra cuja maior vítima pode ser o legado da artista.

DISPUTADA - Tarsila nos anos 1930: briga de parentes põe legado em risco
DISPUTADA – Tarsila nos anos 1930: briga de parentes põe legado em risco (Fine Art Images/Heritage Images/Getty Images)

A história do quadro que virou o pomo da discórdia é curiosa. Por uma década, o galerista Thomaz Pacheco, da OMA Galeria, ouviu falar de uma possível pintura de Tarsila em posse da família do brasileiro-libanês Moisés Mikhael Abou Jnaid, que vivia no país do Oriente Médio. Próximo ao clã, Pacheco não deu muita bola para a história até dezembro do ano passado, quando o proprietário contou que havia trazido o quadro para o Brasil, temendo que a guerra de Israel chegasse ao Líbano. “A gente esperou passar as festas de fim de ano e, em fevereiro, ele me disse que queria vender a obra”, contou Pacheco a VEJA. Paisagem 1925 — que registra uma cena bucólica do interior paulista, onde Tarsila cresceu — não consta do catálogo raisonné, registro oficial do acervo da pintora, o que colocou o galerista diante da possibilidade de um trabalho inédito. “Montei uma estrutura para certificar a obra”, diz Pacheco.

No início de abril, o galerista levou a tela para a feira SP-Arte para mostrá-­la a representantes de um museu do Oriente Médio com o qual estaria em negociação por cerca de 60 milhões de reais. Foi então que a obra veio a público, iniciando uma novela que ganhou novos capítulos nos últimos dias. Após uma perícia, a Tarsila do Amaral Licenciamento e Empreendimentos S/A (Tale), empresa que gerencia o espólio da pintora, anunciou que o quadro é autêntico. Mas a certificação é colocada em xeque por uma parcela dos herdeiros que não compõe mais o grupo e questiona os métodos adotados, fazendo do quadro o mais recente objeto do ruidoso racha familiar.

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Ao saber da história do quadro, que Tarsila teria vendido pessoalmente ao proprietário nos anos 1950, Paola Montenegro, sobrinha-bisneta da artista, à frente da Tale desde 2023, acionou o perito Douglas Quintale, habilitado pelo TJ-SP e presidente do recém-formado comitê de autenticação do espólio. Segundo Quintale, tudo foi conduzido com base em pesquisas documentais, como fotos e relatos dos donos, uma análise estética do estilo da artista e estudo físico-químico que se vale de tecnologias como raio X, acelerador de partículas, infravermelho e scanners para identificar as tintas usadas, o estilo das pinceladas e a idade dos materiais.

PINTURA POP - Selfies com o Abaporu no Masp: modernismo para as massas
PINTURA POP - Selfies com o Abaporu no Masp: modernismo para as massas (Jardiel Carvalho/Folhapress/.)

A perícia também combinou informações de obras já certificadas de Tarsila e montou um banco de dados com características da pintora. “Isso nos permite saber se ela colocava o azul antes do vermelho ou o verde antes do branco”, diz Quintale, citando ainda traços distintivos como pigmentos em comum às obras e a ordem de execução das tintas. “Progredimos até concluir com certeza objetiva que é uma obra de Tarsila”, garante.

A despeito disso, o laudo não foi reconhecido pela Associação de Galerias de Arte do Brasil (Agab) e nem por 29 herdeiros da pintora que assinaram uma carta aberta que questiona a certificação. O principal motivo é o fato de que a análise não teve participação do corpo do catálogo raisonné da pintora, feito pelos principais especialistas em sua obra. Estudiosas como Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros, inclusive, receberam em abril notificações dos advogados da Tale desautorizando que discutam a legitimidade de obras da pintora. “Não acredito na maneira em que foi feita essa certificação. Me parece suspeito eles quererem calar as pessoas que mais conhecem Tarsila do Amaral”, dispara Tarsilinha, sobrinha-neta da pintora que renunciou ao comando do espólio após uma série de divergências com outros herdeiros. Com sua saída e a posterior posse de Paola, um novo comitê foi formado, e uma “modernização” do processo de certificação foi colocada em curso, razão pela qual os antigos especialistas não teriam integrado a análise. “Estamos conhecendo uma obra que foi pintada pela minha tia-bisavó de que ninguém sabia antes. É uma prova de que a metodologia funciona”, contra-ataca Paola.

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FORÇA - O quadro A Lua: vendido ao MoMA por cerca de 20 milhões de dólares
FORÇA - O quadro A Lua: vendido ao MoMA por cerca de 20 milhões de dólares (Fine Art Images/Album/Album/Fotoarena/.)

O fato de Tarsila não ter deixado herdeiros diretos torna mais confusa a disputa. Os dois lados não se entendem nem sobre a quantidade de parentes que teriam voz nas decisões. Tarsilinha alega que há 57 herdeiros, 28 dos quais assinaram com ela a carta contra a certificação. Já Solano de Camargo, advogado da Tale, diz que são 59 — destes, 29 seriam sócios da empresa e outros onze estariam “em procedimento de associação”. Em 2005, quatro sobrinhos-netos fundaram a Tale para administrar o espólio. Tarsilinha ficou na gestão até 2022, quando deixou a empresa e levou consigo outros herdeiros. Desde então, a Tale abriu uma série de processos contra ela, incluindo acusações de divergências nas contas e competição desleal, que ainda correm na Justiça. O novo quadro deve adicionar mais lenha à fogueira jurídica. “Essa carta aberta corresponde a uma fake news”, diz o advogado Solano de Camargo. Ele conta que a empresa cogita uma ação de difamação contra os signatários. Um processo também deve ser movido em breve pelo outro lado, questionando a legitimidade da Tale.

Como se sabe, brigas entre herdeiros produziram efeitos tristes sobre os legados de artistas nacionais, especialmente na música — vide os casos de João Gilberto ou, numa guerra ainda fresca, Gal Costa. Nas artes plásticas, isso se repete até no exterior — os descendentes do espanhol Pablo Picasso, por exemplo, vivem às turras. Mas, no fim do dia, sabem quando é a hora de parar as lutas e pensar no espólio do cubista. Que fique essa lição para os herdeiros da obra colossal de Tarsila.

Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2024, edição nº 2908

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