Um amor bandido
Lampião e Maria Bonita são tema de duas boas biografias que demonstram como o cangaço sintetiza práticas criminosas ainda correntes no Brasil


Casada já na adolescência com um primo mais velho que dava expediente como sapateiro, Maria de Déa queixava-se do marido aos pais. Zé de Neném buscava compensar a feiura com sua habilidade na dança. O exímio pé de valsa, no entanto, não dançava com a própria esposa: varando a noite em arrasta-pés de Malhada da Caiçara, no sertão baiano, Neném não escondia de ninguém suas conquistas. Em casa, foi flagrado com uma peça que denunciava a infidelidade — um pente feminino no bolso. Maria armava um barraco e depois se refugiava na casa dos pais, até ser resgatada, dias depois, pelo companheiro inconstante, no lombo de um cavalo. Naquele tempo — fim dos anos 20 —, considerava-se natural que o homem ciscasse fora do terreiro. Mas Maria não estava mais disposta a aguentar o feioso Zé de Neném. Nos tempos que passava na casa dos pais, a jovem aproveitava para saracotear em festas da região. Foi quando começou a ouvir sobre os mandos e desmandos de um cangaceiro. Virgulino Ferreira, o Lampião, já aterrorizava o Nordeste desde 1921, quando começou a vida de crimes para vingar o assassinato do pai. Pois Lampião, de passagem pela região da Bahia onde morava a jovem admiradora, foi até a casa de Maria para saber quem era a menina que tanto falava dele. Deixou alguns lenços de seda para que ela os bordasse. Voltaria em poucas semanas para ver o resultado. Zé de Neném dançou, agora no sentido que o verbo tem na gíria atual: sua mulher se juntou ao cangaceiro em 1930, mesmo ano em que o jornal The New York Times chamava Lampião de “o bandido mais perigoso da América do Sul”. Maria de Déa assumiu o nome de guerra de Maria Bonita. Foi a primeira mulher a acompanhar os bandoleiros que percorriam da Bahia ao Ceará saqueando cidades. Até então, os membros do bando tinham amantes eventuais ou sustentavam a esposa em residência fixa. Depois de Maria Bonita, outras mulheres entraram para a vida errante do cangaço.
O casal ganhou duas biografias recentes. Maria Bonita — Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço, de Adriana Negreiros, analisa a história pelo ponto de vista mais específico da situação da mulher, e Lampião & Maria Bonita — Uma História de Amor e Balas, de Wagner G. Barreira, reconstitui a história da relação do casal. Bem apuradas, com linguagem fluida e narrativa ágil, são duas grandes reportagens (ambos os autores são jornalistas) sobre o casal bandido. Demonstram que a presença de mulheres no bando não chegou a ser uma conquista feminista: as cangaceiras ainda eram traídas pelo marido (Maria Bonita inclusive) e não tinham voz para impedir a violência sexual que os cangaceiros exerciam nas cidades que atacavam.

Adriana Negreiros e Wagner G. Barreira, cada um a seu modo, desvendam o caráter muito brasileiro da ação criminosa de Lampião. Virgulino Ferreira só exerceu seu poder graças a uma rede de contatos. Em outras palavras, corrompia: comprava armas e munição da ala podre da polícia, e matava desafetos de coronéis que lhe davam guarida e o presenteavam com itens de luxo, como o perfume Fleur d’Amour e o uísque White Horse. Tal qual os milicianos de hoje, Lampião cobrava “proteção” ao comércio. Dava entrevistas esporádicas para aliciar a simpatia da opinião popular.


O bando percorria o agreste quase sempre a pé (os cavalos deixariam rastros com suas fezes). Parte do butim amealhado ficava para trás, uma “bondade” motivada pelo limite de peso que cada bandido podia carregar — entre vestimenta, joias e armas, cada cangaceiro levava em média 40 quilos. Lampião e Maria Bonita gostavam de ostentar a riqueza acumulada. O cabo do facão da primeira-dama do crime era de ouro e marfim.
O casal foi emboscado e morto antes de um café da manhã no sertão de Sergipe, em 1938. Lampião tinha 40 anos; Maria Bonita, 27. De 34 cangaceiros, onze morreram. O tenente João Bezerra, que comandou a luta final contra o bando, exibiu a cabeça dos mortos em várias cidades do Nordeste. Em Piranhas, Alagoas, os troféus macabros foram expostos na escadaria da igreja. As práticas em que se misturam o crime violento e a cumplicidade com o poder seguem por aí.
Publicado em VEJA de 28 de novembro de 2018, edição nº 2610