‘Transformo escombros em música’, diz o bombeiro Davi Lopes
Ele converte a madeira queimada no incêndio do Museu Nacional em belos instrumentos
Sou músico desde criança. Aos 10 anos, tocava saxofone e flauta. Também já gostava de passear pelo Museu Nacional, no Rio, minha cidade. Era fascinado por história e arqueologia. Mas aí cresci, fui vendo o que dava para fazer dentro da minha realidade e acabei entrando para o Corpo de Bombeiros, onde estou desde 1987. Assim que ingressei na corporação, adotei a marcenaria como hobby, fazendo portas e móveis. A música, porém, nunca me deixou e, um dia, me veio a ideia de coletar madeira dos escombros dos incêndios que ajudava a debelar e transformá-la em instrumentos. Sabia que precisava estudar, treinar, aprender. E como não havia luthiers no Rio naquela época, completei o tempo de serviço necessário para tirar uma licença remunerada e parti para São Paulo para fazer um curso e observar profissionais conhecidos em atividade. Na volta, me senti preparado para estrear meu próprio trabalho.
Eu não estava de plantão no dia do incêndio do Museu Nacional, o fatídico 2 de setembro de 2018. Mesmo assim, vesti o uniforme e corri para lá. Trabalhei madrugada adentro, concentrado no combate às labaredas que engoliam o prédio e no resgate do acervo. Não havia espaço para emoção naquele momento, só senso de dever: salvar o máximo que pudesse das chamas. Depois, sim, chorei. Continuei indo lá todos os dias e comecei a pensar no destino das madeiras ainda aproveitáveis. Era um material revestido de história, não podia ser desperdiçado. Foi quando recebi um e-mail oficial que dizia: “Ajude a reconstruir o Museu Nacional com a sua ideia”. E ela apareceu. Encaminhei uma proposta de produzir instrumentos musicais com aquele monte de madeira — e foi aceita. Dei então início aos pedidos de autorização, porque, ainda que se tratando de escombros, continuava sendo patrimônio da União.
Junto com outras seis pessoas de diversas áreas empenhadas em trabalhar para reerguer o Museu Nacional, surgiu o Grupo Fênix, do qual fazem parte o cineasta Vinícius Dônola e o cantor Paulinho Moska, meu amigo. O objetivo é justamente pôr para a frente o projeto de converter a madeira queimada, aparentemente sem uso, em instrumentos musicais que podem trazer dinheiro e vir a ser preciosos para o renascimento do museu. Para mim, virou uma missão. A ideia de um documentário, que seria intitulado Fênix: o Voo de Davi, nasceu logo na primeira reunião e começamos a filmar desde os primeiros dias de labuta, mesmo sem patrocínio firmado, registrando a força-tarefa. Fomos retirando as madeiras — mogno, cedro, vinhático, peroba-do-campo, braúna, jacarandá — e catalogamos 100% do que coletamos, separando o que servia. O plano inicial era construir doze instrumentos e exibi-los em apresentações e shows para arrecadar recursos. Com a pandemia, só consegui fazer seis: violão de corda de aço, violão de corda de náilon, bandolim, cavaquinho, violino e viola caipira.
A divulgação do projeto teve padrinhos fora de série, que me causaram grande emoção ao tocar meus instrumentos, como Gilberto Gil e Paulinho da Viola. Uma honra. O projeto foi ganhando corpo, e a Globo adquiriu o direito de exibição do documentário (disponível na Globoplay). Vamos agora oferecer os instrumentos em um leilão com renda revertida para o museu. Meu pai era cantor de coral e é uma pena que tenha morrido há dezoito anos, sem poder ver tudo isso. Ele ficaria comovido. Minha mãe, uma artesã talentosa, acompanha o andamento dos trabalhos com aquela sensação de que o caminho é bom. Depois do trágico incêndio, meu empenho é para reconstruir a joia carioca que vimos desaparecer. É a reedificação da vida a partir dos escombros, é renascer após as cinzas sem nunca recuar, como a Fênix da mitologia.
Davi Lopes em depoimento dado a Marina Lang
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2021, edição nº 2755