Terceira temporada de ‘Stranger Things’: nem o passado é para sempre
Série continua nostálgica como sempre — mas até à fictícia cidadezinha de Hawkins as transformações chegam
A cidadezinha de Hawkins, no Estado de Indiana, não existe de fato — mas existe em toda parte. Se não mais na realidade, pelo menos na imaginação coletiva americana: é o lugar em que as férias de verão parecem eternas, em que as crianças saem para a brincadeira de manhã e só voltam à noite, em que os adolescentes cumprem seus ritos sociais nos diners, nos parques de diversões ou rodando de carro. E, assim como as cidadezinhas de Tubarão, das histórias de Stephen King ou de E.T. — O Extraterrestre e De Volta para o Futuro, também a Hawkins de Stranger Things é palco de eventos extraordinários. Eles começaram dois anos antes, em 1983, com o sumiço do garoto Will Byers (Noah Schnapp), a aparição de uma menina de cabeça raspada que atende por Eleven (Millie Bobby Brown) e a erupção de um mundo subterrâneo e distorcido — o Mundo de Ponta-Cabeça. Com seus poderes psíquicos sem paralelo, Eleven selou o portal para essa outra dimensão. Ou é isso que se acreditava: agora, na terceira temporada da série, desde a quinta-feira 4 na Netflix, vê-se que as possibilidades bélicas da criatura que domina Ponta-Cabeça haviam já atraído a atenção de gente em outras partes do mundo. Hawkins mais uma vez vai se tornar o epicentro de ocorrências fantásticas — e de ocorrências bem mais prosaicas, mas não menos ameaçadoras à sua existência: esse pedaço perfeito da América acaba de ganhar seu primeiro shopping center. Mal suas portas se abriram, ele já está transformando Hawkins numa outra criatura.
Lançada em 2016, Stranger Things foi o primeiro fenômeno de massa do streaming e talvez o único até aqui em escala global (não foi em todos os territórios que a espanhola La Casa de Papel virou mania). Muito próxima e já tão distante, a década de 80 se presta ao retrato de uma era idílica, em que telefones ficavam pregados na parede e interatividade era o que acontecia quando crianças como Mike (Finn Wolfhard), Dustin (Gaten Matarazzo), Lucas (Caleb McLaughlin), Will e Eleven se reuniam para jogar Dungeons & Dragons no tabuleiro. Os anos 80 sediaram também uma explosão do cinema adolescente e das aventuras juvenis, e os criadores da série, os gêmeos Matt e Ross Duffer, conhecem tudo o que se produziu nela: são mestres em costurar citações e referências em um feitio que soa novo porque não deixa de sê-lo — é a sua metabolização particular dessa matéria-prima. Mas, como é comum nos casos de sucesso repentino, na segunda temporada os Duffer titubearam entre repetir e evoluir.
Nesta terceira incursão, eles recobram a segurança e progridem em várias frentes. Seus protagonistas agora estão em descompasso: alguns, como Will, mantêm um pé na infância, enquanto os outros só pensam em garotas. O xerife Hop (David Harbour), que adotou Eleven, não aguenta mais vê-la aos beijos com Mike, e descobre o que é ter uma filha que bate a porta do quarto na sua cara várias vezes ao dia. Os novos personagens provam ser um deleite, como a garota Robin (Maya Hawke), que não para de zoar com Steve (Joe Keery), ex-galã do colegial que agora vende casquinhas na sorveteria do shopping (já outras parcerias, como a do xerife com Joyce, vivida por Winona Ryder, resultam cansativas). A lista de citações seria interminável — algumas até se adiantam à cronologia da série, como a piscadela para Jurassic Park, de 1993 —, mas, quanto menos se souber da nova trama, melhor.
O que pode ser dito é que o flanco em que Stranger Things mais progride é o dessa personagem principal — Hawkins, que nem sabe disso ainda mas está já sendo integrada a um modelo urbano em que as cadeias de comércio invadem a paisagem, os shopping centers se impõem como paraísos climatizados e a expansão rumo aos subúrbios condena à decadência o centro tradicional. Nas vezes em que os protagonistas agora saem da luz artificial para o mundo, os Duffer fotografam as noites no campo como um sonho banhado pela luz da lua: a velha Hawkins é um éden prestes a desaparecer. Nem em uma série tão nostálgica quanto Stranger Things o passado pode durar para sempre.
Publicado em VEJA de 10 de julho de 2019, edição nº 2642
Qual a sua opinião sobre o tema desta reportagem? Se deseja ter seu comentário publicado na edição semanal de VEJA, escreva para veja@abril.com.br