Sexo, selfies e subversão
A grande retrospectiva brasileira de Ai Weiwei reúne tesouros de escala monumental e obras de inspiração erótico-ecológica produzidas em andanças pelo país
Artista plástico mais globalizado da atualidade, o chinês Ai Weiwei penetrou no famigerado “Brasil profundo” para conceber a grande retrospectiva de sua carreira que se iniciará no dia 20, em São Paulo. Ele veio ao país quatro vezes, trabalhando com parceiros que iam de artesãos de Juazeiro do Norte, no Ceará, a uma ceramista paulista. Na estada em Trancoso, na Bahia, julgou ter captado a essência da nação. “O Brasil é um dos lugares mais sensuais da Terra, por sua cultura e mulheres. Sonhei com isso e, no dia seguinte, quis checar se o que vi correspondia à realidade”, disse, enigmático, a VEJA. Na conversão do devaneio erótico em arte, entraram a engenhosidade de Weiwei e um tanto de masoquismo: ele passou oito horas nu, lambuzado de silicone, para moldar uma cópia de seu físico opulento. Na obra Two Figures, um Ai Weiwei feito de gesso surge ao lado da reprodução do corpinho de uma moça que o próprio conheceu em Trancoso, emulando um casal exausto após o sexo. O curador Marcello Dantas doou seu colchão para acomodar as esculturas dos amantes. “Dei sem problema. Tinha vinte anos de uso”, diz.
A mostra brasileira é a maior individual realizada até hoje pelo popular, respeitado e valorizado artista chinês de 61 anos — cujas criações chegam a ser vendidas por até 10 milhões de dólares. Cerca de setenta itens preencherão os 10 500 metros quadrados da Oca, no Parque Ibirapuera, e flertarão com a paisagem no entorno do prédio projetado por Oscar Niemeyer. No acervo há obras que lhe conferiram fama graças à escala monumental e à beleza estupefaciante. Sim, o público verá Sunflower Seeds, instalação com milhares de microesculturas de cerâmica que imitam sementes de girassol, produzidas e pintadas a mão por artesãs chinesas, a qual fez sucesso na Tate Modern de Londres. Na área externa do parque, estará o conjunto das Forever Bicycles, estrutura de 16 metros de altura criada a partir de 1 500 bicicletas encaixadas umas nas outras.
O brasileiro poderá conhecer de perto os libelos visuais e as ideias libertárias que fizeram de Ai Weiwei o maior artista-ativista vivo. “A humanidade e a liberdade não são dádivas que vêm do nada, e sim produto da luta de quem as defende”, prega. Para ele, seu ofício é indissociável da rebelião política: “Vejo a arte como a mais vívida e destemida expressão de toda a atividade humana”. Seu bote com bonecos infláveis, que representa o drama dos refugiados no Mediterrâneo, faz jus a esse credo — e surgirá flutuando no lago do Ibirapuera.
Estarão na Oca, ainda, os diversos petardos de subversão que tornaram Weiwei um dissidente nunca digerido pelo regime comunista chinês. Ele faz da denúncia dos abusos sua matéria-prima natural. Recentemente, causou impacto ao divulgar nas redes sociais vídeos da demolição de seu estúdio em Pequim pelo governo. “Tudo o que faço é arte, incluindo esta entrevista”, diz. Uma característica do artista é incutir humor e ironia nas estocadas mais combativas. É assim que uma sacada simples — digamos, a selfie que fez diante do espelho de um elevador ao ser levado para a prisão domiciliar, em 2011 — pode se elevar à categoria de terremoto militante de alta magnitude.
Mas de volta às aventuras do guerreiro da arte contemporânea chinesa pelo Brasil: Weiwei se entendeu bem com o grupo de 25 artesãos de Juazeiro do Norte que confeccionaram cerca de 200 ex-votos — as esculturas populares usadas para agradecer a Deus ou aos santos por dádivas alcançadas (doenças curadas, sobretudo). No meio do conjunto, Weiwei exercita o irônico culto narcisista da própria imagem que o transformou em uma versão oriental e atualizada do artista pop americano Andy Warhol (1928-1987). Há ex-votos representando uma ressonância magnética do cérebro do artista, ou sua já clássica pose em que exibe o dedo do meio, ou ainda sua postura na hora de fazer uma selfie. “O lugar de Weiwei na arte hoje é muito parecido com o de Warhol em certo momento. Ambos viraram ícones em vida, e souberam explorar isso”, diz Marcello Dantas.
As andanças do artista pelo Brasil não foram só festa. Pelo contrário, ele deu um trabalhão a seus parceiros nacionais. No caso dos ex-votos, o design de cada peça era sugerido e aprovado por ele em intermináveis idas e vindas entre o sertão cearense e Berlim, onde mora. A temporada em Trancoso foi ainda mais fatigante (e não se fala aqui da exaustão dos sonhos eróticos). Na Mata Atlântica do sul da Bahia, Weiwei criou esculturas a partir de raízes milenares de uma árvore considerada extinta, o pequi-vinagreiro. O chinês também montou um andaime em plena floresta para produzir o molde de uma futura peça de 200 toneladas que vai reproduzir o tronco morto de uma dessas árvores. A tarefa consumiu várias toneladas de um tipo especial de silicone trazido da China. O imenso pequi de ferro fundido, com 36 metros, só deverá ficar pronto em 2019. Para além da mensagem ecológica, a obra deve ser interpretada à luz da tradição chinesa. “Na nossa cultura, a árvore sempre foi usada como símbolo do homem e da sociedade. Hoje, é uma expressão de sobrevivência”, diz ele.
Escaldado pela perseguição das autoridades chinesas, Weiwei dispensou as generosidades do Estado brasileiro: informado de que teria de descrever de antemão o que iria produzir se quisesse obter financiamento das leis de incentivo locais, ele vetou a ideia, alegando que não abriria mão da liberdade de fazer o que lhe desse na telha. Soluções criativas garantiram o orçamento de suas excursões, que ficou entre 8 milhões e 9 milhões de reais. Um consórcio de colecionadores deu parte do dinheiro em troca do direito sobre as obras feitas aqui. Uma lojinha na Oca venderá suvenires como as sementes de cerâmica de Sunflower Seeds. Weiwei produziu, por fim, 300 cópias de uma série batizada com um conhecido palavrão nativo, a ser vendidas por preços que variam de 6 000 a 9 000 dólares cada uma. F*** consiste em uma caixa que contém quatro pequenas representações de frutas comuns no país, além de uma ostra — incluída por ser, vá lá, a “fruta afrodisíaca do mar”. A sensualidade brasileira virou um negócio da China.
Publicado em VEJA de 10 de outubro de 2018, edição nº 2603