Se não pode vencê-lo, una-se a ele: o Ocidente se rende à fofura do K-pop
Os ídolos certinhos da música jovem coreana são cortejados por estrelas como Lady Gaga e John Legend e dão até seus primeiros passinhos na política
Nos anos 50, os coreanos viveram uma guerra fratricida que dividiu o país em uma metade capitalista e a outra, comunista. Ainda que permaneçam em eterna tensão com a Coreia do Norte, do famigerado Kim Jong-un, os prósperos e liberais sul-coreanos hoje se engalfinham em uma batalha muito mais alegre e colorida. O objetivo dela é conquistar o coração e mente dos jovens em todo o mundo por meio da música. Desde 2012, quando o rapper Psy invadiu as rádios com a música Gangnam Style, que tem hoje 3,68 bilhões de visualizações no YouTube, o K-pop, o pop coreano, ganhou notoriedade global. Ao contrário das previsões de que seria só um modismo exótico, o fenômeno não apenas segue firme nos rankings das plataformas de streaming e muito barulhento nas redes sociais: o K-pop agora faz o entretenimento do Ocidente se curvar a seu sucesso — com reflexos, inclusive, nas causas políticas do momento.
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Dois grupos estão na linha de frente dessa luta pela supremacia no mercado de música mundial: o septeto masculino BTS e o quarteto feminino Blackpink. Em novembro de 2019, com a música Ddu-du Ddu-du, as meninas entraram para o seletíssimo clube do bilhão de visualizações no YouTube, do qual fazem parte nomes como Taylor Swift, Shakira, Katy Perry e Maroon 5. As integrantes do Blackpink, com idade entre 23 e 25 anos, foram também uma das grandes atrações do descolado Festival Coachella, nos Estados Unidos. Já o BTS foi a sensação da festa do Grammy, no início do ano, em apresentação ao lado do rapper Lil Nas X. A sedução coreana se repete no Brasil. Em 2019, o BTS atraiu quase 85 000 pessoas a dois shows lotados no Allianz Parque, em São Paulo. O culto é tão fervoroso que fãs ficaram acampados por meses na porta do estádio.
No mais recente desdobramento desse avanço irresistível, os artistas ocidentais renderam-se aos fatos: se não é possível vencer o K-pop, o jeito é juntar-se a ele. As cantoras Lady Gaga e Dua Lipa gravaram com o Blackpink, e o BTS reuniu-se com astros como Halsey, Nick Minaj e Charli XCX. Até John Legend, com seu R&B adulto, fez dueto com a cantora Wendy, de outro grupo feminino juvenil made in Korea, o Red Velvet. Além das parcerias, há ao menos uma experiência que busca copiar a bem-sucedida fórmula do país asiático, o Now United (confira o quadro à dir.).
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Clique e AssineEstima-se que existam hoje em atividade cerca de 200 grupos de K-pop, em sua maioria gerenciados por quatro grandes empresas de entretenimento: JYP, SM, YG e Big Hit. Elas praticamente dominam o mercado e transformaram o K-pop em uma poderosíssima arma de propaganda cultural patrocinada pelo governo sul-coreano — o tão falado “soft power”. Como grande parte das músicas é cantada no idioma local, já é possível observar um efeito curioso: em todo o mundo houve um aumento na procura por cursos do desafiador idioma coreano. A estratégia, vale lembrar, tem um pé na música e o outro no cinema, com resultados igualmente notáveis — vide a premiação do filme Parasita, do diretor Bong Joon-ho, no Oscar.
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O K-pop é uma indústria altamente especializada e, como tal, há pouquíssimas coisas improvisadas em sua linha de produção. Tudo é milimetricamente planejado. A escolha dos idols (forma como os cantores são chamados) se dá por meio de concorridas seletivas promovidas pelas produtoras. Há até cursinhos preparatórios para as provas. Montado o grupo, a vida pessoal dos artistas passa a ser observada de perto pelas empresas, que proíbem relacionamentos amorosos indesejados, regulam as opiniões que eles emitem em redes sociais, controlam as entrevistas para a imprensa e bancam até cirurgias plásticas. As letras são escritas por uma elite de compositores, e as coreografias são exaustivamente ensaiadas.
Com tanto controle, os hábitos ou opiniões controversas dos idols só são expostos conforme a conveniência. Ativismos radicais, então, nem pensar. As boas ações dos artistas se resumem a doações financeiras para entidades filantrópicas. Mas essa postura sofreu uma guinada, ainda que tímida, nas últimas semanas. O BTS anunciou a doação de 1 milhão de dólares para o Black Lives Matter, e pediu aos fãs que apoiem o movimento. É um engajamento que faz sentido na lógica de risco zero do K-pop: afinal, quem vai ser contra a luta antirracismo? Mas, ainda assim, é um engajamento.
Tornar-se uma peça de destaque na engrenagem cobra seu preço. A exigência da perfeição, que nas sociedades orientais já é sufocante, não raro revela-se insuportável para os idols do K-pop — com consequências trágicas como o suicídio. No mês passado, Yohan, do grupo TST, foi encontrado morto, aos 28 anos. No fim de 2019, outros três artistas também morreram nas mesmas circunstâncias. Além da pressão para encaixarem-se num figurino, os jovens cantores enfrentam outro drama tipicamente coreano. Num país que oficialmente continua em guerra com o Norte, os rapazes têm de cumprir um serviço militar de 21 meses antes de completar 28 anos. Por isso os grupos masculinos de K-pop têm prazo de validade. Jin, integrante do BTS, deverá desfalcar o grupo até dezembro, quando atingirá a idade-limite, e Suga, em março de 2021.
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Se os idols são tolhidos em sua individualidade, o mesmo não pode ser dito dos fãs. Indiferentes às restrições dos artistas, eles se organizam para promover manifestações políticas. A mais ruidosa ocorreu no mês passado, por meio do novo app-sensação entre os jovens, o TikTok. Por lá, eles confirmaram presença em um comício de Donald Trump em Tulsa, Oklahoma — o objetivo, cumprido com louvor, era pregar uma peça no presidente, já que ninguém compareceu. O episódio prova que o K-pop é capaz não só de galvanizar milhões de jovens, mas de transformá-los em massa pensante com alto poder de ação. Com soldados tão aguerridos (e atrevidos), a música coreana vai se expandindo pelo planeta.
Publicado em VEJA de 15 de julho de 2020, edição nº 2695
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