Restaurações bizarras destroem quadros e esculturas
Erros evidenciam o risco de colocar em mãos inábeis obras de arte de valor inestimável
O Davi, de Michelangelo, a Mona Lisa, de Da Vinci, a Vênus, de Botticelli. O que essas obras têm em comum, além de prestígio e indescritível beleza? A idade. Todas elas foram feitas há mais de 500 anos. Ainda assim, o visitante que vai ao Museu do Louvre ou à cidade de Florença para vê-las de perto não se decepciona com seu estado, sempre perfeito, pois elas foram devidamente cuidadas e, quando necessário, restauradas. Restauração é um trabalho árduo e demorado. Umidade, temperatura, luz e insetos são apenas algumas das muitas causas de degradação. E cada tipo de plataforma requer uma abordagem diferente. Assim, para restaurar uma pintura a óleo, o especialista pode retirar todo o verniz e passar uma camada nova, restabelecendo o brilho original. Já em murais, é preciso injetar resina com sílica e argamassa de cal. Quanto a pinturas à base de aquarela ou guache, lava-se a obra para retirar as manchas, além de remendar rasgos. “É um processo bem complexo e específico”, diz João Rossi, restaurador do Museu de Arte Sacra, em São Paulo. “A restauração deve ser muito bem pensada porque o resultado pode ser irreversível.”
Mesmo com técnicas desenvolvidas há séculos, foram observados recentemente diversos casos malsucedidos, para dizer o mínimo. A partir de junho deste ano, especialistas espanhóis passaram a exigir mais rigidez nas leis que cercam a profissão depois do resultado catastrófico da restauração de uma obra do pintor barroco Bartolomé Esteban Murillo. Não adiantou: na cidade de Palência, o ornamento de uma moça sorridente, datado de 1923, acabou deformado por um artista inábil. A escultura de feições singelas tornou-se um rosto grosseiro que, segundo alguns, lembra a imagem do presidente americano Donald Trump. A Espanha, aliás, tem sido pródiga em gerar desastres na área. O exemplo mais emblemático ocorreu em 2012, quando uma pintura do início do século XX de Jesus Cristo foi estragada em uma tosca tentativa de restauração. O caso ganhou notoriedade, exatamente como o atual, de um exemplo ridículo (e trágico) desse tipo de trabalho.
A questão envolve, evidentemente, o nível de quem realiza tão sofisticada tarefa. “A popularização da profissão levou a um aumento de tratamentos no estilo ‘faça você mesmo’”, disse a VEJA a especialista Debra Norris, professora da Universidade de Delaware, nos EUA. Compartilha da mesma opinião o ex-presidente da associação espanhola de restauradores Fernando Carrera. Ele afirma que, da mesma forma que não se entrega um edifício a quem não é engenheiro, não se pode delegar a amadores a tarefa de restaurar obras de arte. “Preferimos nem mesmo usar o termo ‘restauração’ para falar desse tipo de intervenção”, reforça o atual presidente da associação, Francisco Jiménez.
Felizmente, existem formas seguras de prevenir os acidentes. De um lado, é preciso regulamentar a atividade dos restauradores e fortalecer as leis de proteção à herança cultural. Do outro, o emprego de tecnologia — cada vez mais precisa — pode ajudar no controle das intervenções. O problema é que nem todos os governos e instituições estão dispostos a pagar milhares de dólares por um trabalho qualificado. É uma pena. Em tempos em que existem possibilidades competentes de manutenção da arte, não faz sentido arriscar danos em obras inestimáveis. O mundo, que fica mais belo com essas obras, não pode se dar ao luxo de trocar o sublime pelo ridículo.
Publicado em VEJA de 2 de dezembro de 2020, edição nº 2715