Os mistérios e as polêmicas sobre a música ‘inédita’ de Mozart
Descoberta na Alemanha, a cópia da partitura de uma serenata reacende o debate sobre autenticações no mundo das artes
Tem novidade na praça: Wolfgang Amadeus Mozart acaba de lançar uma música inédita. Embora soe improvável, já que o célebre compositor austríaco morreu há mais de dois séculos, a afirmação é verdadeira. Recentemente, pesquisadores da Biblioteca Municipal de Leipzig, na Alemanha, encontraram uma misteriosa peça de doze minutos, atribuída ao gênio de Salzburgo. Criada para trio de cordas e dividida em sete movimentos, a serenata em dó batizada de Ganz kleine Nachtmusik (“Pequeníssima música noturna”, em tradução livre) teria sido escrita quando ele tinha entre 10 e 13 anos, na década de 1760. A partitura é assinada por “Wofgang Mozart”, sem a letra L. A caligrafia, no entanto, não é do suposto autor, sugerindo que o manuscrito seja cópia do documento original. Não é nó que indique falsificação, pois antes do século XIX as composições eram distribuídas por meio de várias versões feitas a mão.
Os pesquisadores envolvidos na descoberta foram cuidadosos — a partir de trabalhos da infância de Mozart e daquele preciso período histórico, além de investigações em torno da papelada de arquivos, aproximaram a partitura do compositor. Em seus primeiros anos, o prodígio escreveu muitas obras de câmara como a recentemente encontrada, várias delas consideradas perdidas. Essa, porém, teria sido salva por uma de suas irmãs. “É fascinante pensar que ela preservou a obra como uma lembrança do irmão”, diz Ulrich Leisinger, chefe de pesquisa da International Mozarteum Foundation, organização dedicada à obra de Mozart. “Talvez ele tenha escrito o trio especialmente para ela.”
A autenticação de uma obra musical é um processo delicado — mais complexa até do que a de pinturas, que podem ser submetidas a mecanismos de raio X, estudo das tintas e, hoje, ferramentas de inteligência artificial. É só o que falta para autorizar a identificação de um retrato atribuído ao holandês Rembrandt, encontrado no sótão de um antiquário em uma cidade do Maine, nos Estados Unidos, pelo estudioso Kaja Veilleux, e depois leiloado por 1,4 milhão de dólares.
No caso de sinfonias e serenatas, prelúdios e óperas, as incertezas brotam dada a profusão de manuscritos que atravessam as décadas. O conjunto variado de evidências permite diferentes classificações. A autoria pode ser dada como certa, possível, duvidosa ou até mesmo improvável, a depender da quantidade de indícios. “É importante assinalar que essa composição não foi classificada com autoria certa, e sim com autoria duvidosa de Mozart”, diz Paulo Castagna, professor do Departamento de Música da Unesp. “A pesquisa foi realizada a partir das normas, mas fica a possibilidade da indicação ter sido um erro, um desconhecimento ou uma atribuição infundada do copista, fatos comuns em cópias antigas.”
Apesar da extensa produção, que soma mais de 600 obras, a natureza caótica da vida de Mozart e os tempos em que viveu impactaram significativamente na preservação de seu acervo. Isso fez com que a aparição de manuscritos atribuídos a ele não sejam, propriamente, fatos isolados. Em 2009, pesquisadores descobriram duas peças musicais que se acredita terem sido escritas quando ele tinha 7 ou 8 anos. Em 2012, um caderno encontrado em uma caixa indicou possíveis partituras compostas aos 10 anos. Em 2016, uma composição feita em parceria com seu suposto inimigo Antonio Salieri foi encontrada no Museu Nacional de Praga. “A história da arte ama um caso inesperado de ressurgimento”, diz Percival Tirapeli, professor de história da arte da Unesp.
A aventura pautada pelos achados é bonita. A famosa As Quatro Estações, de Vivaldi, embora tenha se tornado uma das obras mais conhecidas da história, foi esquecida após a morte do compositor, em 1741. Só conquistou fama em 1927, quando as anotações foram descobertas e comprovadas. Em casos mais recentes, o trabalho é mais simples. Em 2017, treze fitas de Bob Marley, gravadas na década de 1970, foram encontradas em um hotel em Londres e restauradas. Não havia nenhuma dúvida.
O vaivém de surpresas — isso é, aquilo não — serve como metáfora para a natureza duradoura da arte e o fio às vezes frágil, sempre tênue, pelo qual ela se pendura. De mãos dadas com a ciência, é crucial ir ao fundo arqueológico para separar o joio do trigo. Enganações precisam ser abandonadas e condenadas. Mas, no momento em que despontam convicções, cabe pedir aplauso e bis. Em Leipzig, filas de mais de 400 metros se formaram para ouvir Mozart, até que apareça uma gravação no Spotify.
Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2024, edição nº 2913