Os melhores filmes de 2019: a arte como espelho
De 'Coringa' a 'Yesterday', os destaques do ano
Se 2019 foi o ano das perplexidades, a cultura do período revelou-se um espelho notável dessa realidade. A algaravia do mundo emergiu no cinema — do retrato da crise da masculinidade exposto no Coringa de Joaquin Phoenix à visão afiada do coreano Parasita sobre a “luta de classes” na era da hiperconectividade. A seguir, os destaques do cinema em 2019.
1 – CORINGA (Joker, Estados Unidos, 2019)
Existem gargalhadas sarcásticas, tenebrosas, maníacas — e há a risada de Joaquin Phoenix: um ricto involuntário de desespero e desatino que, quando começa, se estende pelos segundos mais longos e aflitivos que um espectador enfrentará no cinema. Palhaço de aluguel por um salário miserável, Arthur Fleck, o personagem de Phoenix, é afligido por problemas mentais, assim como a mãe doente de quem cuida; repugna a todos com sua esquisitice; apanha de estranhos na rua; e sonha revelar-se um comediante capaz de impressionar até seu ídolo, o apresentador de talk show Murray Franklin (Robert De Niro). Em um dado momento, porém, a vida imaginária de Arthur vai irromper e instaurar o caos em Gotham City. Em um desempenho antológico e tão definitivo como o de Heath Ledger no Cavaleiro das Trevas de 2008 — embora muito diferente —, Phoenix faz da anarquia do Coringa uma expressão do sofrimento psíquico da solidão e do desamparo, emoldurada por um filme tão conturbado quanto o próprio personagem.
2 – PARASITA (Gisaengchung, Coreia do Sul, 2019)
Em Seul, num apartamento esquálido, meio enterrado no subsolo de uma rua suja, pai, mãe e um casal de filhos vivem de pequenas vigarices; há tempo ninguém arruma emprego. Em outro lado da cidade, numa rua imaculada, uma família idêntica mora em uma casa espetacular, voltada para um jardim. Aos poucos, a vida desses dois núcleos vai se entretecer, numa teia de dependência e exploração mútuas — até que um segredo emerge de um porão, e uma tempestade arrasta a todos com sua violência. Em um trabalho fenomenal, premiado com a Palma de Ouro em Cannes, o diretor sul-coreano Joon-ho Bong encena com suas imagens de textura rica, seus enquadramentos instigantes e seus movimentos de fluidez voluptuosa uma história de originalidade e contundência arrebatadoras, tão precisa e tão acessível que não há nada, nela, que se possa perder na tradução.
3 – ERA UMA VEZ… EM HOLLYWOOD (Once Upon a Time…in Hollywood, Estados Unidos/Inglaterra/China, 2019)
Na Califórnia embriagada de 1969, o acaso põe o astro decadente de faroeste Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) e seu dublê, Cliff Booth (Brad Pitt), na casa ao lado da ocupada pelo cineasta polonês Roman Polanski e sua mulher, a atriz Sharon Tate (Margot Robbie). Faltam meses ainda para o funesto 9 de agosto daquele ano, quando Sharon, grávida de oito meses, e outras quatro pessoas foram assassinadas a facadas por malucos do culto do guru Charles Manson — e, na sua crônica meio inventada, meio escrupulosamente verídica desse intervalo de tempo, o diretor Quentin Tarantino prepara, em ritmo delicioso, a melhor daquelas suas tramas em que o cinema, como uma máquina do tempo, corrige os rumos do passado.
4 – O IRLANDÊS (The Irishman, Estados Unidos, 2019)
Mal de saúde, em um asilo, Frank “o Irlandês” Sheeran (Robert De Niro) narra como tudo se passou, desde o dia em que se envolveu com a máfia e, por causa dela, também com Jimmy Hoffa (Al Pacino), o poderosíssimo presidente do sindicato de caminhoneiros que dobrava os Estados Unidos aos seus interesses — até ser desaparecido em 30 de julho de 1975, em um crime até hoje sem solução. Nas três horas e meia do longa-metragem feito para a Netflix, o cineasta Martin Scorsese propõe uma resposta possível. Mais ao ponto: na sua crônica dos médios escalões do crime organizado, faz com que aos poucos subam à tona temas como velhice, obsolescência, reputação, a desconexão entre o passado e o presente — e os torna a razão de ser de O Irlandês.
5 – A VIDA INVISÍVEL (Brasil/Alemanha, 2019)
Uma decisão impulsiva, em uma noite qualquer, e todo o destino das irmãs Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler) muda: até ali inseparáveis, elas nunca mais se verão. Estão ambas na mesma cidade, mas poderiam estar em cantos opostos do mundo — Eurídice imersa na frustração de abandonar a música para se tornar mãe de família, Guida mergulhada nas dificuldades de ser mãe solteira no Rio de Janeiro provinciano dos anos 50, sem nunca deixarem de ansiar uma pela outra. Valendo-se da mais fina destilação do melodrama, o diretor Karim Aïnouz mapeia, no frustrado candidato do Brasil à disputa de filme estrangeiro no Oscar (desbancara Bacurau), o tempestuoso trajeto interior das protagonistas e mostra na carne delas o impacto do patriarcalismo e da opressão.
6 – YESTERDAY (Inglaterra/Rússia/China, 2019)
Todas as luzes do mundo se apagam ao mesmo tempo e, nesses segundos, uma singularidade qualquer deleta da história a existência dos Beatles. Ao que parece, Jack (Himesh Patel) é o único que ainda tem memória deles. Aspirante a cantor e compositor cuja única plateia regular é a encantadora Ellie (Lily James), ele agora tem uma chance espetacular de sucesso — ou algo como 130 chances, se conseguir se lembrar de todas as faixas gravadas pelo quarteto. Em um mês, passa do anonimato à popularidade planetária. A consciência, entretanto, o atormenta. O roteirista Richard Curtis e o diretor Danny Boyle se unem em um dos filmes mais adoráveis da década: um tributo aos Beatles, ao poder cultural do pop e, não menos relevante, à gentileza e aos bons sentimentos.
Publicado em VEJA de 1º de janeiro de 2020, edição nº 2667