Relâmpago: Assine Digital Completo por 2,99

Orgulho nacional: a saga de Fernanda Torres para brilhar em Hollywood

Ao arrebatar um histórico Globo de Ouro, a atriz dá novo impulso ao filme Ainda Estou Aqui na acirrada corrida pelo Oscar

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 10 jan 2025, 11h16 - Publicado em 10 jan 2025, 06h00

A primeira vez que Fernanda Torres leu o roteiro de Ainda Estou Aqui foi no papel de amiga de Walter Salles, e não como possível protagonista. O cineasta queria a opinião dela sobre o texto e já tinha outra atriz em mente — a paulistana Mariana Lima, que desistiu do projeto por razões de saúde. Tempos depois, em 2022, Fernanda então se surpreendeu quando Salles lhe pediu que interpretasse a figura central de seu novo filme: Eunice Paiva, advogada, ativista e viúva de uma das mais simbólicas vítimas da ditadura militar, o ex-deputado Rubens Paiva. A longa experiência como atriz — ela atua nos palcos desde os 13 anos — não a livrou de certo frio na barriga: dedicada principalmente à comédia, Fernanda encararia o drama acachapante da mulher que viu seu marido (vivido no filme por Selton Mello) ser tirado de casa por agentes da repressão e, após seu assassinato nos porões do regime, teve de se desdobrar entre a criação de cinco filhos e a luta para que o Estado brasileiro fosse responsabilizado. Um papel que exigia atuação contida em gestos e palavras, mas cirurgicamente expressiva em atitudes e olhares. Sem se acomodar na soberba dos calejados pela profissão, ela contratou a preparadora de atores Helena Varvaki. Treinou arduamente por um mês antes da reunião do elenco. “Sou uma atriz diferente hoje. Eunice me ensinou muito que eu não conhecia”, disse a atriz a VEJA em novembro passado.

Ainda Estou Aqui – Marcelo Rubens Paiva

A personagem lhe trouxe algo não menos relevante: prestígio global notável para uma atriz brasileira de qualquer tempo — seus êxitos só encontram paralelo nos de sua mãe, a grande Fernanda Montenegro. A artista de 59 anos acumula elogios desde a estreia do filme no Festival de Veneza, em agosto de 2024. A jornada rendeu seu maior fruto até agora, no domingo 5, com a vitória no Globo de Ouro de atriz dramática, a primeira brasileira a alcançar tal façanha. “Ainda Estou Aqui a encontra na plenitude de sua inteligência emocional, na sua maturidade como atriz”, disse Salles a VEJA (leia entrevista).

arte Oscar

A conquista trouxe um sabor especial pelo curioso fato de que a primeira e única atriz daqui a ser indicada ao prêmio fora sua mãe, 26 anos antes, por Central do Brasil. Logo, o troféu de Fernanda Torres tem peso dobrado. Há, agora, imensa expectativa quanto à próxima etapa da aclamação internacional: a busca pelo Oscar — que sua mãe também disputou (e não levou) no passado. A tradição sugere que o Globo de Ouro aumentou consideravelmente suas chances no prêmio máximo do cinema (leia o quadro). Para controlar a inevitável pressão do momento, Fernanda tem suas estratégias. “Eu mantenho o pessimismo, não crio expectativas e sou grata pelo que já tenho”, contou, hilária, a VEJA após o Globo de Ouro. “Coisa mais triste morrer com o discurso pronto no bolso.”

Segredo de Estado: O desaparecimento de Rubens Paiva – Jason Tércio

A popularidade de Fernanda foi exponencialmente multiplicada em Hollywood nos poucos segundos em que a americana Viola Davis anunciou sua vitória. Ela foi aplaudida de modo efusivo pela inglesa Tilda Swinton, que concorria na mesma categoria. Rumo ao palco, ganhou olhares de admiração de Kate Winslet e encontrou no caminho a mão de Nicole Kidman como apoio — duas grandes atrizes também indicadas. Na festa do evento, em Los Angeles, recebeu elogios calorosos de Demi Moore. Agora, essas mesmas estrelas aguardam ansiosamente pelo domingo 19 — dois dias após a data prevista inicialmente, em razão dos grandes incêndios que atingiram Los Angeles —, quando os indicados ao Oscar serão enfim anunciados. Ao sair do posto de azarão, Fernanda bagunçou as previsões sobre quais serão as cinco candidatas à estatueta de atriz. E, a essa altura, quem a menosprezava já descobriu que está diante de um peso-­pesado da arte brasileira.

Continua após a publicidade
APOSTA - 'Ainda Estou Aqui': o filme pode colocar o Brasil no Oscar após 26 anos
APOSTA - ’Ainda Estou Aqui’: o filme pode colocar o Brasil no Oscar após 26 anos (./Divulgação)

Prólogo, Ato, Epílogo: Memórias – Fernanda Montenegro

A infância de Fernanda pode ser descrita, no mínimo, como peculiar. “Fui criada nas coxias, aprendi por osmose”, conta ela sobre o ambiente onde cresceu, acompanhando a mãe e o pai, o ator Fernando Torres (1927-2008). Quando estava em casa, o teatro a seguia: era comum assistir na mesa de jantar ao casal ensaiando as falas das peças. Assim, descobriu cedo a potência de Shakespeare e a acidez de Nelson Rodrigues. Seguir o ofício dos genitores parecia destino incontornável. “Fui forçada a ser atriz”, brincou ela ao explicar para uma repórter americana como abraçou a profissão. Longe de ser a típica nepo baby, termo pejorativo para os filhos de celebridades que encontraram portas abertas no meio artístico, trilhou caminho próprio — e o fez sem rechaçar as origens.

Estreou na TV aos 15 anos, fez novelas, seriados, filmes e peças de teatro que depuraram seu talento e versatilidade (leia no quadro). Escreveu três livros. Foi celebrada aqui e lá fora — seu primeiro reconhecimento internacional veio com o prêmio de atriz no Festival de Cannes, em 1986, pelo filme Eu Sei que Vou Te Amar, honraria inédita para o Brasil na época. Para além dos redutos cult, abraçou com gosto o popular nas séries Os Normais e Tapas & Beijos, ambas da Globo. “Com Fernanda Torres, confirmei uma antiga tese minha: ator bom é ator inteligente”, disse a VEJA o cocriador de Os Normais, Alexandre Machado. “Adorava escrever a Vani, porque sabia que ela ia entender o que se passava na cabeça da personagem.” Seu carisma também conta, e muito, para a longevidade de ambas as tramas, que sobrevivem por meio dos famigerados memes na internet. No Globoplay, o efeito Fernanda Torres é medido em números: entre novembro e dezembro, as reproduções de Tapas & Beijos aumentaram 72% e Os Normais explodiu, com 151% a mais na audiência se comparado a 2023. A plataforma de streaming da Globo tem muito a celebrar: Ainda Estou Aqui é o primeiro filme original da empresa — e o próximo será Vitória, dirigido pelo marido de Fernanda, Andrucha Waddington, protagonizado por Fernanda Montenegro.

Continua após a publicidade
LEGADO - As duas Fernandas: “Somos uma espécie de entidade”, resume a filha
LEGADO - As duas Fernandas: “Somos uma espécie de entidade”, resume a filha (./Divulgação)

Fim – Fernanda Torres

A dobradinha de Fernandas é um típico produto made in Brazil. Para além de terem atuado juntas diversas vezes, em paralelo elas entrelaçaram suas carreiras com a história do país — Fernandona, aliás, também está no elenco de Ainda Estou Aqui, magistral como a Eunice mais velha. “Somos uma espécie de entidade”, já definiu Fernanda sobre a relação com a mãe, com quem compartilha o nome, o talento e a genética estampada no rosto. O laço entre elas deixou mais interessante a narrativa em torno do filme no exterior. “A mamãe é referência do Brasil lá fora”, disse Fernanda a VEJA. Jornais como The New York Times e The Guardian destacaram o ressentimento brasileiro com a derrota da monumental atriz no Oscar de 1999 para a mediana Gwyneth Paltrow. Ao dedicar o Globo de Ouro à matriarca em seu discurso, ela adicionou doçura e emoção à história. As conexões entre as duas não são o único reforço bem-vindo à campanha de Ainda Estou Aqui lá fora. Desde o início, a estratégia era ligar um drama político e humano do passado, ambientado no Rio dos anos 1970, com as incertezas da atualidade nas democracias ocidentais. “É um drama familiar que se passa numa ditadura e temos lidado com questões antidemocráticas no presente”, diz um dos produtores do longa, Rodrigo Teixeira.

Tanto esforço pelo Oscar tem razão de ser. O prêmio mais cobiçado do cinema é concedido por milhares de profissionais da indústria de entretenimento e confere um selo de prestígio essencial. Se conquistar tal visibilidade, o cinema brasileiro pode atrair parcerias de outros países e investimentos, movimentando o setor criativo e a economia. Fernanda tem a seu favor o processo de diversificação de Hollywood — e do próprio Oscar — nos últimos anos. De maioria branca, americana e masculina, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles, responsável pelo prêmio, passou por reformas internas ao ser acusada de racismo. Em 2020, atingiu o objetivo de dobrar o número de mulheres e membros de etnias minoritárias, convidando profissionais de 68 países. Em 2025, o número de votantes é maior do que nunca: são 9 905 membros.

FORÇA FEMININA - Eunice Paiva na vida real (à dir.) e na ficção (à esq.): a ativista foi exemplo de resiliência
FORÇA FEMININA - Eunice Paiva na vida real (à dir.) e na ficção (à esq.): a ativista foi exemplo de resiliência (Divulgação; Eduardo Knapp/Folhapress/.)
Continua após a publicidade

Os melhores momentos de Os Normais – Alexandre Machado e Fernanda Young

O caminho para Fernanda e Ainda Estou Aqui chegarem à premiação é duro. Na hora de escolher os indicados e, depois, os vitoriosos em cada uma das 23 categorias, a organização leva em conta a área de atuação de cada um dos votantes, sem permitir que um membro faça parte de mais de um contingente — ou seja, diretores indicam diretores, e assim por diante. Os atores formam o grupo mais numeroso: para conquistar a estatueta de atriz, Fernanda terá de convencer boa parte dos 1 258 filiados de sua área de atuação. Já os cinco filmes internacionais indicados são selecionados por um comitê especial — crivo pelo qual Ainda Estou Aqui terá de passar. Depois, qualquer membro ativo da Academia pode votar em todas as categorias.

Um ponto a favor do filme brasileiro é que as mudanças no quadro de votantes resultaram numa maior presença do cinema feito fora dos Estados Unidos — vide o sucesso do sul-coreano Parasita e do francês Anatomia de uma Queda em anos recentes. A produção latino-americana, contudo, permanece o patinho feio do grupo. O Brasil nunca ganhou o Oscar de filme internacional — e desde Central do Brasil, do mesmo Salles, não disputa a categoria. Um dado singular é o fato de que o favorito ao prêmio neste ano, Emilia Pérez, é falado em espanhol e se passa no México, mas é uma produção francesa com estrelas americanas e europeias — a combinação irritou os mexicanos, que acusam o filme de xenofobia. A controvérsia ganhou força nas redes depois da vitória do longa no Globo de Ouro — mas ainda é cedo para dizer se o burburinho vai afetar a força da produção até o Oscar, que será entregue em 2 de março.

CONCORRÊNCIA - Demi Moore (à esq.) e Karla Sofía Gascón em 'Emilia Pérez': rivais na briga pelo Oscar
CONCORRÊNCIA - Demi Moore (à esq.) e Karla Sofía Gascón em ‘Emilia Pérez’: rivais na briga pelo Oscar (MUBI; Pathé Films/.)

Na Estrada: O cinema de Walter Salles – Marcos Strecker

Continua após a publicidade

O advento das redes sociais, aliás, globalizou a interferência nas premiações americanas, que antes eram palco restrito dos desejos de figurões de Los Angeles. Enquanto Emilia Pérez corre o risco de perder votos, Fernanda Torres ganhou maior visibilidade nos perfis de grandes canais e jornais americanos pelo inegável engajamento que seu rosto proporciona. O vídeo com o discurso dela no Globo de Ouro soma mais de 76 milhões de visualizações no Instagram — o segundo mais assistido foi o de Zoë Saldaña, melhor atriz coadjuvante por Emilia Pérez, com 7,5 milhões de reproduções. Foi também nas redes que se levantou uma discussão pública e política. Seguidores do ex-presidente Bolsonaro — notório apologista da ditadura militar — armaram boicote contra o filme e criticaram a vitória de Fernanda. O movimento não deu resultado: Ainda Estou Aqui levou mais de 3 milhões de espectadores aos cinemas brasileiros. Com ou sem Oscar, o filme cumpriu sua missão: a de mostrar que o Brasil tem feridas abertas a serem curadas. Feito que já faz de Fernanda Torres um genuíno orgulho nacional.

“Fernanda tem um talento natural”

O diretor Walter Salles falou a VEJA sobre a trajetória do filme e de sua protagonista fora do Brasil.

EQUIPE - Selton Mello (à esq.), Salles e a atriz: campanha para divulgar o filme no mundo
EQUIPE - Selton Mello (à esq.), Salles e a atriz: campanha para divulgar o filme no mundo (KC Armstrong/Deadline/Getty Images)

Aumentou a expectativa para uma indicação de Fernanda ao Oscar após o Globo de Ouro? A vitória ajuda, mas não garante uma indicação. São votantes diferentes. É um ano muito competitivo. O mesmo para filme internacional. As chances de uma indicação são boas, mas não há certeza.

Ao acompanhar o amadurecimento de Fernanda Torres, o que pontuaria como os grandes diferenciais dela? O talento enorme da Fernanda já era palpável em Terra Estrangeira, a nossa primeira colaboração. Ainda Estou Aqui a encontra na plenitude de sua inteligência emocional, na sua maturidade como atriz. Fernanda tem um talento natural e uma fé inquebrantável no cinema, que a faz confiar e investigar o que vai além de sua zona de conforto.

Continua após a publicidade

De Central do Brasil para cá, percebe mudanças no modo como Hollywood trata os filmes internacionais?Roma, do Alfonso Cuáron, e Parasita, do Bong Joon-ho, sinalizaram uma mudança de paradigma e filmes não falados em inglês passaram a receber múltiplas indicações. Porém, a maior parte dos votantes do Oscar é americana. É um prêmio criado por uma indústria em transformação, sob o domínio crescente dos streamings. Para um longa independente como o nosso, o desafio é fazer com que vejam o filme antes de selar o voto.

Com reportagem de Thiago Gelli

Publicado em VEJA de 10 de janeiro de 2025, edição nº 2926

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

ECONOMIZE ATÉ 82% OFF

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
Apenas 2,99/mês

Revista em Casa + Digital Completo

Receba 4 revistas de Veja no mês, além de todos os benefícios do plano Digital Completo (cada revista sai por menos de R$ 9)
A partir de 35,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
Pagamento único anual de R$35,88, equivalente a R$ 2,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.