‘O Spleen de Paris’, de Baudelaire, atesta genialidade do poeta maldito
Nestes tempos de versos instagramáveis, uma coletânea do francês mostra o magnetismo insuperável do autor que fundou a poesia moderna
Charles Baudelaire era provavelmente mais maldito que famoso e talvez mais invejado que admirado quando resolveu aventurar-se por uma escrita poética “sem ritmo nem rima”, como ele mesmo escreveu. Afinal, em 1857, aos 36 anos, ele já tinha publicado a seminal coletânea de poesias As Flores do Mal — obra que, como bem definiu o crítico Otto Maria Carpeaux, fundou a lírica moderna e libertou a poesia do “monopólio tirânico dos temas petrarquescos e românticos”, expandindo para sempre suas possibilidades materiais e formais.
Foram as flores malignas de Baudelaire que praticamente inauguraram e definiram o decadentismo, que depois seria mais conhecido por simbolismo, movimento literário que olhou para dentro do ser humano, valorizando os mistérios da alma e a transcendência. Depois dessa obra, passou a ser cool entediar-se, posar de triste, bufar e tossir (não de Covid-19, mas de tuberculose) em centros urbanos que mudavam rapidamente com a chegada das fábricas, dos operários, com o advento de novas tecnologias científicas e o nascimento de estruturas sociais e econômicas até então inéditas. “No mundo do utilitarismo, apareceu a mais inútil das criaturas, o poeta”, escreveu Carpeaux sobre o contexto em que Baudelaire vivia.
O poeta francês já havia morrido havia dois anos quando O Spleen de Paris — Pequenos Poemas em Prosa foi primeiramente publicado na Europa, em 1869. Mas, antes de partir (com apenas 46 anos), ele deixou anotações com os títulos e a ordem dos cinquenta textos que compunham seu projeto de prosa poética, que teve a influência declarada da obra Gaspart de la Nuit, publicada em 1842 por Aloysius Bertrand, o precursor do estilo. O livro acaba de ganhar uma nova e competente tradução para o português, feita por Samuel Titan Jr., e uma edição elegante, com valiosas notas explicativas sobre os fatos e personagens citados.
Alguns dos textos são pequenos e saborosos contos, outros são devaneios, inteligentes reflexões ou exortações poéticas, mas todos com a grife baudelairiana: a atenção para a cidade de Paris e suas cenas (os tableaux parisiens), suas mulheres, sua pobreza, seus prazeres e a eterna luta do bem contra o mal. É curioso que o famoso spleen, tão presente em toda a obra de Baudelaire e até no título deste livro, não determina o tom predominante na obra. Nas palavras de Jean-Paul Sartre, em seu livro Baudelaire (1947), o spleen “é o próprio símbolo da insatisfação”; não uma simples e calculada deprê para fotos com legendas motivacionais no Instagram, mas um estado de tristeza autoconsciente e reflexivo. Há nessa ação uma compreensão artística madura, moderna e existencial.
Numa época em que as religiões vinham sendo questionadas e suas regras e dogmas transgredidos, Baudelaire fez da arte sua profissão de fé, tanto para o bem e o belo como para o mal e o abjeto. Figuras soturnas conversando em um ambiente lúgubre convivem com bebês fofos e velhinhas amistosas no mesmo livro. O resultado vem da observação arguta do cotidiano, com descrições surpreendentes do que o autor vê, ouve e sente, combinações de palavras incomuns, contrastes e aproximações que só um poeta é capaz de fabular. “A velhota mirrada ficou toda feliz ao ver a linda criança que todo mundo festejava, que todo mundo queria agradar — aquela linda criatura, tão frágil quanto a velhota e, como ela, sem dentes nem cabelos”, escreve. E, um pouco adiante: “Neste mundo estreito, mas tão repleto de desgostos, um único objeto me sorri: a garrafinha de láudano, velha e terrível amiga; e, como todas as amigas, fecunda em carícias e traições”.
No mundo de hoje, quando a poesia não encontra muita ressonância entre leitores e, com pouquíssimas exceções como o coletivo TCD e Bráulio Bessa, raramente figura nas listas de mais vendidos ou nas vitrines de livrarias, O Spleen de Paris faz-se necessário. Seus textos curtos são uma ótima porta de entrada para o universo poético não só de Baudelaire, mas de todos nós, humanos. Existe beleza e poesia na dura vida cotidiana, mesmo em tempos pandêmicos. Há esperança.
Publicado em VEJA de 20 de janeiro de 2021, edição nº 2721