O ouro dos incas: mostra imperdível traz tesouros peruanos ao país
Exposição no CCBB do Rio, e que vai percorrer o país até 2024, lança luz sobre uma riqueza reluzente que virou maldição
O mais célebre (e caro) resgate de que se tem notícia na história foi protagonizado por Atahualpa, imperador dos incas. Aprisionado pelos espanhóis pouco após a chegada do conquistador Francisco Pizarro ao Peru, em 1532, o indígena prometeu a seu algoz, em troca da liberdade, ouro suficiente para encher a sala onde estava preso (6 metros de altura e outros 6 de largura). Como miséria pouca era bobagem, botou no pacote mais duas vezes essa quantidade de prata.
Àquela altura, os europeus já sabiam das riquezas da nação que se autodenominava Tahuantinsuyu, cuja vasta extensão ia dos Andes ao litoral do Pacífico e à selva amazônica — mas não esperavam que fosse tanta. Os homens de Atahualpa providenciaram o resgate em poucos dias. O que só o livrou momentaneamente das agruras: logo os espanhóis encontraram um pretexto para executá-lo. Levado ao Velho Mundo, aquele butim — avaliado hoje em 300 milhões de dólares — produziu inflação e enriqueceu reis e banqueiros. Dali em diante, os maravilhosos objetos em ouro e prata dos incas foram saqueados e derretidos até se esgotar. Agora, uma preciosa amostra do pouco que sobrou das relíquias, conservadas principalmente em tumbas só descobertas na posteridade, está entre nós.
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A exposição Tesouros Ancestrais do Peru exibirá 162 itens de valor superlativo (não só em matéria de beleza) na sede carioca do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) a partir da quarta-feira 11 — até o ano que vem, ela passará por Belo Horizonte, Brasília e São Paulo. Vindo de uma das principais coleções dessas antiguidades, o Museu do Ouro e das Armas do Peru, em Lima, o acervo vai de tapeçaria e cerâmica a artefatos prosaicos utilizados no dia a dia pela civilização andina de mais de 3 000 anos. É a forte presença do ouro, claro, que diferencia e espanta no acervo: de enfeites e estatuetas de pequeno porte a suntuosas coroas ritualísticas, o metal reluzirá no CCBB. Com orçamento projetado de 8 milhões de reais captados por leis de incentivo, a instituição confia no apelo pop da arte pré-colombiana. “As pessoas têm os incas em seu imaginário, e conhecer mais sobre eles é enriquecedor”, diz Sueli Voltarelli, diretora do CCBB-Rio.
Ali se revela uma história não apenas de esplendor, mas — suprema ironia — da ruína a que o excesso de brilho condenou aquela sociedade. O império era um amálgama de povos que conviveram ou se sucederam ao longo dos séculos, até culminar na unificação promovida pelos incas — muitas vezes, imposta à base da força e da crueldade. Isolados do mundo, eles criaram tecnologias notáveis de forma autônoma, da agricultura sofisticada à metalurgia de elementos como ouro, prata e cobre. Mas, num lance paradoxal, os incas estavam muito atrás dos europeus em outros quesitos estratégicos. Não tinham uma escrita propriamente dita, só códigos de registro e contabilidade por meio de artefatos feitos de cordas, os quipos. Também não usavam animais de tração, nem dominavam a fundição do ferro — o que explica a queda galopante do império com 14 milhões de habitantes diante de 168 homens, um canhão e 27 cavalos de Pizarro. Por fim, não tinham imunidade aos vírus trazidos da Europa para a América: doenças como gripe, varíola e sarampo tiveram peso decisivo na derrota.
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O que é menos lembrado, mas se revela fundamental para entender o choque de civilizações, é a diferença no modo como os incas lidavam com a economia. Eles não tinham nenhuma forma de dinheiro: tudo era negociado na base das trocas. Sua visão sobre os metais preciosos também era ingênua aos olhos dos colonizadores. “Para eles, o ouro tinha valor ritual e era indicador de status, mas não instrumento de acumulação de riquezas”, diz o curador Rodolfo de Athayde. Tanto exibicionismo desapegado logo despertou uma cobiça que seria fatal para os incas.
Uma Breve História da Arqueologia
Até chegar àquele ponto de ruptura, no entanto, o império viveu um florescimento ímpar, como testemunha a mostra. Entre os itens palpitantes estão um par de luvas feitas em ouro e estatuetas produzidas nos primeiros séculos da era cristã, mas que parecem pós-modernas — como um boneco com piercing no nariz e uma inusitada “tanga” criado na tradição Frias, do norte do Peru, e datado entre 200 a 700 d.C. A religião é o motor de boa parte das relíquias. Há artefatos elaborados para adornar sepulturas ou uso em cultos, da taça de prata sobre uma cabeça de lhama ou alpaca até uma trombeta ancestral com cabeça de felino e corpo de cobra. A exposição no CCBB reúne, ainda, um lote fabuloso dos objetos que são o símbolo maior do misticismo inca: os tumis, facas ricamente decoradas que eram utilizadas inclusive para sacrifícios humanos. Nesse sentido, os povos do Peru não eram tão macabros quanto os maias e astecas, da América Central e México. Mas também podiam executar pessoas — até mesmo crianças — como dádiva aos deuses em momentos dramáticos.
Famoso por sua coleção dessas facas, o Museu do Ouro de Lima é uma instituição pioneira no empréstimo de tesouros incas para mostras internacionais. Mas, curiosamente, passou por um escândalo de efeito depurativo no começo dos anos 2000: de caráter privado, o museu foi acusado de ter antiguidades falsas em meio a seu acervo. De lá para cá, a coleção foi periciada por experts, e o governo peruano passou a catalogar todo o patrimônio histórico em mãos particulares no país. “Hoje, posso assegurar que tudo que será mostrado é verdadeiro”, disse a VEJA a arqueóloga Paloma Carcedo, que conduziu o pente-fino. Ao menos nesse caso, portanto, tudo que reluz é — ainda bem — ouro.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2023, edição nº 2862
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