O melhor de nós: série celebra a criatividade que nos faz humanos
Série 'Civilisations' é produzida pela BBC e exibida no Brasil pelo canal Film&Arts
O que fazer diante da constatação tão óbvia de que somos, os seres humanos, capazes da mais voraz destruição? Lembrar, uma vez e sempre, que somos também movidos por um desejo ancestral e imorredouro de criação. Podemos ver isso contemplando, perplexos, a pequena estátua do “Homem-Leão”, encontrada em uma caverna alemã em 1939 e datada em aproximadamente 40 000 anos — a mais antiga obra “figurativa” da história de nossa espécie. Seguramente vemos essa ânsia de criação na minuciosamente bela e realista “ágata de combate”, uma pedra preciosa de 3,5 centímetros na qual o artista retratou um enfrentamento corpo a corpo de dois guerreiros, dignos das páginas de Homero — só que produzida por volta de 1500 a.C., 700 anos antes dos poemas homéricos, e descoberta apenas em 2017. Estamos diante desse mesmo ímpeto quando ouvimos a história de Mimar Sinan, o arquiteto do Império Otomano responsável pela construção da mesquita Solimão, em Istambul. Nem a mais brutal das experiências humanas — o Holocausto, durante a II Guerra Mundial — foi capaz de eliminar nossa marca inequívoca como espécie. Seja nos desenhos das crianças judias do gueto de Theresienstadt, produzidos e preservados graças ao sacrifício da professora de artes Friedl Dicker-Brandeis, seja na portentosa e pungente obra de Anselm Kiefer, revisitando os horrores históricos de sua Alemanha natal, nossa condição não muda: “Somos o animal que produz arte”.
É o que nos afirma o historiador, ensaísta e inigualável apresentador da BBC Simon Schama, logo no início do primeiro de nove episódios impecáveis da série Civilisations. A produção da televisão pública britânica é inspirada diretamente no documentário clássico de 1969, Civilisation, escrito e apresentado pelo historiador da arte sir Kenneth Clark (leia o texto). Cinquenta anos depois, Civilisations, exibido no Brasil pelo canal Film&Arts, volta ao tema em três perspectivas distintas — a de Schama, a da historiadora e classicista da Universidade de Cambridge Mary Beard e a do historiador e apresentador da BBC David Olusoga. A nova série não se resume ao enfoque exclusivo na civilização ocidental, especialmente europeia, da antecessora: apresenta uma longa jornada que nos conduz às mais remotas manifestações da arte rupestre na África, à pintura de paisagem milenar da tradição chinesa, à meticulosidade da pintura do Império Mughal, na Índia, ou aos nossos mais familiares ícones da arte pré-colombiana da civilização asteca, por exemplo. Tudo isso sem descuidar da esplendorosa tradição europeia.
Os três historiadores (especialmente Schama, que apresenta cinco dos nove episódios) encontraram um fio condutor adequado para mostrar o que há em comum a todas essas culturas. E isso, é claro, não será feito por uma linha cronológica, mas por uma percepção mais ampla: é nossa humanidade que será retratada, através de seu impulso criativo, encontrando, nas mais variadas condições, incríveis possibilidades de realizações. Na aridez impensável de Petra, monumental cidade antiga localizada na atual Jordânia, ou na improvável missão de guardar o imperador depois da morte, como coube aos soldados de terracota chineses, a civilização sempre achou um meio de se manifestar, radiante e surpreendentemente.
Mas o que é, afinal, “civilização”? Em um momento memorável da série de 1969, logo na abertura do primeiro episódio, Kenneth Clark formulava a pergunta incômoda. Sua resposta pode não agradar ao espectador contemporâneo já domesticado pelos dogmas de um relativismo cultural anêmico — mas ainda faz todo o sentido. Com a Catedral de Notre-Dame, em Paris, ao fundo, Clark afirmava que não poderia definir tal termo de forma abstrata, mas que poderia identificar a civilização quando estivesse diante dela. “E acredito que estou diante dela agora”, concluía.
Meio século mais tarde, coube a Simon Schama, na abertura de Civilisations, transmitir essa lição ao público. Com as impressionantes imagens das ruínas da cidade histórica de Palmira, na Síria, encantando o espectador, Schama narra o caso de Khaled al-Assad, o diretor de museu encarregado de preservar os tesouros antigos daquele lugar único, em que as culturas grega, romana, persa, semítica, indiana e chinesa se encontraram e se influenciaram mutuamente. Quando o Estado Islâmico tomou a cidade, em 2015, esse patrimônio foi implacavelmente destruído. Khaled al-Assad, feito prisioneiro, recusou-se a entregar informações aos terroristas sobre o paradeiro de certas obras, que, graças a sua coragem, se salvaram. Os fanáticos decapitaram Al-Assad, aos 83 anos, em praça pública. Nas palavras de Simon Schama, “podemos passar muito tempo discutindo o que é ou o que não é civilização, mas, quando seu oposto aparece, em toda sua brutalidade, crueldade, intolerância e desejo de destruição, nós sabemos o que a civilização é”.
Voltamos a sentir essa desolação quando um incêndio destruiu, em abril deste ano, parte da catedral francesa que Clark apresentou como exemplo da civilização. Compreendemos a devoção à beleza e a uma memória partilhada, independentemente de nosso pertencimento a uma cultura específica. E assim sentimos porque o espetáculo das civilizações, com tudo aquilo que coletiva ou individualmente criamos ao longo de milênios, é o melhor que temos em nós: nossa humanidade.
Publicado em VEJA de 26 de junho de 2019, edição nº 2640
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