O legado de Zé Celso, o provocador dos palcos
Dramaturgo tornou-se referência fundamental do teatro brasileiro já no fim dos anos 1950, quando fundou o Oficina

Na mitologia grega, Dionísio simbolizava o caos e a imprevisibilidade. Era o protetor daqueles tidos como inadequados pela sociedade e conhecido, ainda, como o senhor das festas, do vinho — e, claro, do teatro. Dionísio foi, definitivamente, o deus de José Celso Martinez Corrêa. Tal idolatria era não só propagada à exaustão pelo próprio dramaturgo, diretor e ator mais conhecido simplesmente por Zé Celso. Em suas peças no célebre Teatro Oficina, ou na vida pessoal, marcada pela irreverência e pelo desprezo às convenções, uma genuína pulsão dionisíaca sempre moveu o artista que morreu na quinta-feira 6, aos 86 anos, em decorrência de um incêndio trágico em seu apartamento que provocou queimaduras em 53% de seu corpo.
Nascido em Araraquara, interior de São Paulo, Zé Celso tornou-se referência fundamental do teatro brasileiro já no fim dos anos 1950, quando fundou o Oficina. Mais que por sua inegável modernidade, suas peças logo se converteram em símbolo pela carga de inconformismo e resistência — contra a ditadura militar, em seu período mais duro, ou a “caretice” de qualquer tempo. Não à toa, elas foram a expressão perfeita nos palcos teatrais dos ideais libertários da tropicália — que sacudiu a cultura nacional nos anos 1960.
“O teatro é o que se leva depois de uma travessia. É matéria energética em movimento.”
Zé Celso (1937-2023)
Foi nesse período que Zé Celso produziu seus feitos mais lendários. Com a clássica O Rei da Vela, montada em 1967, reinventou a peça homônima do modernista Oswald de Andrade com uma carga mordaz de crítica social e política. Em 1968, às vésperas da decretação do AI-5, ato que daria início à fase mais repressiva do regime, estreou seu trabalho de maior contundência contra o autoritarismo: Roda Viva, peça escrita por Chico Buarque e dirigida por Zé Celso que condena a sociedade do consumo e a violência das instituições, não sem deboche e lances chocantes. Por onde passou, o espetáculo atraiu ataques e até agressões aos atores. Em 1974, o diretor foi preso e torturado no extinto Dops. Exilado, viveu em Portugal por quatro anos.
Na redemocratização, Zé Celso manteve o estilo provocador — e foi enchendo suas montagens de elementos capazes de causar choque comportamental. Notadamente, a nudez e o sexo, como nas peças do ciclo Os Sertões. Em 2018, cinquenta anos após a original, remontou Roda Viva. Na vida pessoal, não ficava devendo às suas peças: falava de seus hábitos sexuais de forma abertíssima, fumava maconha sem pudor — e nutria uma extremada briga com Silvio Santos para evitar um empreendimento ao lado de seu teatro, em São Paulo. Um mês antes de morrer, casou-se com o ator Marcelo Drummond, seu parceiro por 37 anos. Até nos últimos atos, Zé Celso fez barulho.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2023, edição nº 2849