Black Friday: Assine a partir de 1,49/semana
Continua após publicidade

O julgamento de Flaubert

A exigência de sentidos únicos na arte é eterna forma de censura

Por José Francisco Botelho
Atualizado em 4 jun 2024, 15h41 - Publicado em 8 mar 2019, 07h00

Em 31 de janeiro de 1857, o público parisiense lotou a Sexta Corte do Tribunal Correcional do Sena para assistir ao espetacular julgamento de Gustave Flaubert — descrito nos autos simplesmente como homme de lettres. Nos meses anteriores, Flaubert publicara Madame Bovary em capítulos na Revue de Paris. Escrito em estilo impessoal e verbalmente justo, o extraordinário romance conta a história de uma jovem provinciana que, perturbada por leituras românticas, trai o marido repetidas vezes, leva-o à ruína financeira e comete o mais célebre suicídio da literatura ocidental. Escandalizado, o Ministério Público processou Flaubert por “ofensa à moral pública e à religião”. A transcrição do julgamento (que projetou à fama o até então obscuro escritor) fornece ainda hoje uma leitura fascinante e didática: ensina, pelo exemplo negativo, o que não se deve exigir de uma obra literária.

O promotor do caso, maître Ernest Pinard, acusou Flaubert de simpatizar com os pecados da protagonista em vez de condená-los abertamente. “Se, em todo o romance, não há um único personagem que possa fazer a protagonista curvar a cabeça, se não há no texto uma única ideia, uma única linha que repreenda o adultério, então o livro é imoral”, esbravejou. Já o advogado de defesa, num discurso que durou quatro horas, argumentou que o sentido do livro era exatamente o contrário: “O estímulo à virtude pelo horror do vício”. O tribunal absolveu o réu no dia 7 de fevereiro, com uma advertência: “Há certos limites que a literatura, mesmo a mais leviana, não deve ultrapassar, coisa que o autor parece ter esquecido”. E a disputa sobre o sentido do romance perdura: Madame Bovary já foi lido como defesa trágica da emancipação feminina, como fantasia inquisitorial misógina e várias outras coisas. Afinal de contas, o que monsieur Flaubert, homme de lettres, queria dizer com seu livro?

Sou da opinião de que as intenções de um autor só interessam como curiosidade arqueológica; quanto a significados finais, sempre vale lembrar o que Umberto Eco afirmou em Obra Aberta (1962): a multiplicidade de sentidos possíveis é característica de toda grande arte. Sob esse ponto de vista, também a defesa de Flaubert estava equivocada: se o romance fosse apenas um “estímulo à virtude pelo horror do vício”, não teria se convertido em uma das obras literárias mais reinterpretadas na história.

Como seria, hoje, o julgamento de Flaubert? A pergunta é metafórica, mas não ociosa. Ao acompanhar certos frenesis da cultura contemporânea, sinto que estamos de volta à Sexta Corte do Sena: a obsessão por sentidos unívocos, o horror à ambiguidade e a exigência de adesão a postulados políticos monolíticos é uma ameaça tão grande à imaginação humana quanto a chama das fogueiras. A Obra quer ser aberta, mas algo em nós insiste em fechá-la; no tribunal dos séculos, prefiro repetir declaração de Flaubert no banco dos réus (devidamente anotada por seu estenógrafo): “Não temo senão as literaturas adocicadas que engolimos sem repugnância e que nos envenenam sem escândalo”.

Continua após a publicidade

Publicado em VEJA de 13 de março de 2019, edição nº 2625

carta
Envie sua mensagem para a seção de cartas de VEJA Qual a sua opinião sobre o tema deste artigo? Se deseja ter seu comentário publicado na edição semanal de VEJA, escreva para veja@abril.com.br

 

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.