O funk subiu a ladeira
Valendo-se de letras palatáveis e fusões com outros gêneros, os astros paulistas do pancadão quebram a hegemonia dos cariocas
Em seu apartamento na Zona Leste de São Paulo, Kevin Kawan de Azevedo, de 20 anos, recebe a mensagem de voz do fã insistente. Todo humilde, o interlocutor diz reconhecer que o cantor de funk — conhecido como MC Kevinho — é uma pessoa muito ocupada, mas roga que ele envie uma saudação em áudio para uma amiga. O artista acha graça e, de pronto, atende à solicitação: a pedido de Neymar, envia mensagem para certa amiga do craque do Paris Saint-Germain. No mesmo dia, também manda um “salve” para Vittorio, filho da apresentadora Adriane Galisteu. No showbiz nacional, qualquer palavra de MC Kevinho está valendo muito. Maior expoente da vertente paulista do funk, ele é famoso por hits como Tumbalatum e Olha a Explosão (“Essa novinha é terrorista / É muito explosiva /Quando ela joga com a bumbum no chão”). O beija-mão de celebridades como Neymar prova que o ritmo americano que se abrasileirou no Rio de Janeiro agora criou raízes vigorosas em São Paulo. Passados cinco anos da explosão da carioca Anitta, os funkeiros paulistas superam os colegas do Rio de Janeiro em popularidade. E não só: adicionando organização profissional a um gênero que brota como que por geração espontânea nas periferias, seus expoentes consolidam o funk como expressão musical incontornável da juventude brasileira atual.
A mudança de status é bem ilustrada pelo último lance na carreira de Kevinho: ele acaba de assinar um contrato robusto com a multinacional Warner Music (especula-se que seu passe tenha custado 17 milhões de reais). Kevinho não é uma voz solitária. O bonde de novos funkeiros paulistas tem nomes como WM, Jerry Smith, Kekel e Fioti, que migraram dos bailes da periferia — meio onde se forja a cultura do pancadão (leia a reportagem) — para duetos com estrelas bem estabelecidas do pop e do sertanejo, de Anitta a Luan Santana. Outros, como MC Keron e Nando DK, ainda buscam hits capazes de alçá-los ao primeiro time, mas já têm agenda concorrida e até se apresentam no exterior. Nando, aliás, cansou de ouvir reclamações dos pais por ser funkeiro. “Eles queriam que eu arranjasse um emprego”, diz. Hoje, é o artista que mantém a família.
Muitos críticos previam (ou desejavam) que o pancadão seria moda passageira. Mas já há mais de três décadas que o Miami Bass — batida importada pelos primeiros DJs do gênero — ganhou linguagem local, incorporando ingredientes como o tambor de candomblé (o “tambozão”). A mescla com outros ritmos de sucesso foi o passo decisivo para sua universalização. Atualmente, há funk nas versões sertaneja, forró e arrocha. A abertura às fusões, aliás, diferencia a sonoridade do funk paulista em relação ao similar carioca. “No fundo, o que fazemos é música brasileira”, diz Kevinho.
Funk é música de jovens para jovens. A idade média de um “mestre de cerimônias” (o MC, que canta e geralmente compõe as letras) é 23 anos. Segundo pesquisa da consultoria JLeiva em doze capitais, o funk é o gênero predileto de 55% dos jovens entre 12 e 15 anos. Também ocupa posição expressiva entre jovens de 16 a 24 anos: 28% deles escutam funk — porcentual que empata com o pop nessa faixa etária e ganha por 2 pontos do rock, perdendo só para o ainda hegemônico sertanejo, que tem a preferência de 39%. Dados do YouTube Analytics mostram que o funk é mais popular junto ao público masculino (53% contra 47% de mulheres). Seu consumo ocorre principalmente por celular e computador. Nas emissoras de rádio, não tem a mesma força exibida em plataformas digitais. Relatório da Crowley Broadcast Analysis sobre audiência radiofônica revela que as inserções do funk paulista entre as 100 canções mais tocadas de 2018 se dão por meio de parcerias com artistas de outros gêneros. Não Fala Não pra Mim, que junta o MC Jerry Smith — na vida civil, Rodrigo Silva dos Santos, baiano que se fez em São Paulo — e os sertanejos Humberto & Ronaldo, ficou na 14ª posição. Vai Malandra, de Anitta com MC Zaac, ocupou a 85ª.
O sucesso de Kevinho, hoje o principal funkeiro do país, advém de outra característica do pancadão paulista: os artistas fazem plano de carreira. “O pessoal de São Paulo tem uma estrutura que falta no Rio. Pensa com cabeça empresarial de sertanejo”, diz o ex-executivo de gravadora e DJ André Werneck. O caso de Kevinho demonstra como é feita a transição do diletantismo para o profissionalismo. Nascido em Campinas, ele queria ser jogador de futebol. De funk, só ouvia Daleste e Guimê, MCs que ditavam o jogo na vertente ostentação, cujas letras enalteciam o dinheiro e os prazeres materiais — onda que micou quando a recessão se abateu sobre a classe C. Há sete anos, quando um vizinho o convidou para fazer funk “de brincadeira”, Kevinho mergulhou na nova profissão. Mudou-se para São Paulo e participou de shows de MCs do mesmo escritório que o empresariava até se firmar individualmente. Hoje, dispõe de jatinho para realizar vários eventos num só dia. Já se apresentou na Holanda, Inglaterra e Estados Unidos e lotou shows em Portugal. Está estudando inglês para ampliar a ainda incipiente carreira internacional. “Em Amsterdã, as pessoas não entendem o que a gente canta, mas estão curtindo”, diz. O rapaz que em tempos menos favoráveis ganhou do pai um boné comprado a prestação agora desfila com roupas da Dolce&Gabbana — um presente, vejam só, dado pelo próprio Stefano Gabbana.
WM — nome artístico de William Almeida de Araújo, de 29 anos — também conquistou seu lugar no mundo do pancadão quase por acidente, antes de assumir uma visão profissional do funk. Começou a trabalhar como produtor. Certo dia, um rapper faltou à gravação e o DJ de plantão chamou WM para dar o recado ao microfone. “Ele disse que eu tinha a voz de um Bob Esponja rouco.” WM virou MC, mas não só: abriu um escritório que produz e empresaria novos nomes do funk.
Em Street Fighting Man, o rolling stone Mick Jagger indagava: “O que um jovem pobre pode fazer / Além de cantar numa banda de rock?”. Nas periferias brasileiras, pode virar astro do funk. Muitos bem que tentaram outras atividades. WM foi cabeleireiro. Karoline Costa Azevedo, a MC Keron, é estudante de comunicação, e Keldson Rodrigues, o Kekel, de 23 anos, trabalhou como mecânico. Mas a promessa da carreira musical fala mais alto. A destreza de Kekel com radiadores e caixas de câmbio foi útil no começo da carreira. Certa vez, o carro que o conduzia de uma cidade a outra quebrou e o MC teve de consertar o veículo. “Para piorar, levamos calote do contratante”, lembra.
Kekel exemplifica a trajetória típica do funkeiro que sai das franjas da marginalidade para os holofotes. De início, ele cantava “proibidão”, o funk que faz apologia das drogas, fala de sexo em termos chulos e celebra facções criminosas. Nos últimos dois anos, passou a explorar um lado romântico, o que lhe rendeu abertura para uma parceria com o sertanejo Luan Santana. “Eu tinha uma música, Vingança, que pedia uma participação meio americanizada. Chamei o Kekel porque amo o timbre da voz dele”, diz o sertanejo.
Muito do sucesso do funk paulista se deve a essa mudança de tom. Não, seus artistas não abriram mão das letras de duplo sentido ou sobre as “loucurinhas” dos bailes — mas elas já foram bem mais pesadas. Hoje, impera uma malícia meio infantil. Em sua busca por um público mais abrangente, os funkeiros paulistas quase aboliram palavrões. “Sei que tenho um público infantil, então uso no máximo bumbum ou bunda”, diz Kevinho. Kekel é o caso mais exemplar de conversão ao bom-mocismo: trocou a boca suja pelo romantismo manhoso. Mas ainda se escutam letras enviesadas, que cada ouvinte interpreta como quiser. MC Keron se tornou conhecida, em parceria com MC Digu, por Vou Catucar Seu Boga. “Boga é um peixe”, jura a inocente.
A nova geração do funk ocupa, claro, o YouTube. Quem manda nesse campo é Konrad Cunha Dantas, o KondZilla, que, aos 30 anos, já se tornou a MTV do pancadão. Nascido no Guarujá, é dono do terceiro canal de YouTube mais visto do mundo: são 46 milhões de inscritos e 23 bilhões de visualizações. Só o clipe de Bum Bum Tam Tam, de MC Fioti, passou de 1 bilhão de espectadores. KondZilla (o apelido une seu nome ao do monstro japonês Godzilla) tem espírito empreendedor. O pai era pedreiro. A mãe, professora, morreu quando o produtor tinha 18 anos. Com o seguro de vida pela morte dela, custeou um curso de cinema. Em 2009, pediu dinheiro emprestado à namorada e comprou uma câmera profissional, passando a registrar o emergente mundo do funk. “Tive sorte de olhar para um movimento que todo mundo via com preconceito”, diz.
Dois anos atrás, KondZilla criou uma gravadora que tem sob contrato Kekel, Guimê e Dani Russo. “Virei empresário para ser dono do conteúdo dos meus clipes”, diz. Os próximos passos incluem uma série para a Netflix, com estreia prevista para este ano, e a ampliação de seu pequeno império na Zona Leste de São Paulo. VEJA acompanhou uma palestra de KondZilla aos funcionários de sua empresa. Entre o café da manhã e um churrascão, ele deu depoimentos inspiracionais sobre sua trajetória. Anunciou a contratação de um executivo para funções burocráticas: KondZilla quer se concentrar só nos vídeos.
Apesar da estrutura empresarial, vida de funkeiro é ralação danada. WM gastou seis horas de São Paulo a Jardinópolis — cidade paulista onde se consome funk com avidez — para uma apresentação de pouco mais de quarenta minutos. Na cidade seguinte, Franca, tomou calote do contratante. Por insistência do sócio, cantou por vinte minutos. Já era de manhã quando chegou a Ribeirão Preto, de onde partiu em voo para Curitiba. Em outra noite, Kekel viajou de São Paulo para apresentações em Amparo e São Carlos. A caminho da segunda cidade, por pouco o carro não atropelou capivaras que atravessavam a estrada. Na casa noturna de São Carlos, Kekel foi atingido por um copo de cerveja. Revoltado, fez um show mais breve e voltou para São Paulo, onde pegaria um avião para Goiânia.
O funk paulista passa por um momento hegemônico, mas não se deve desprezar a capacidade dos cariocas de se reinventar. O DJ Polyvox, nome artístico de Diogo Lima Costa, de 27 anos, vem popularizando o funk em 150 BPM (batidas por minuto). Mais frenética, essa modalidade tem divulgadores de peso como o DJ Dennis, âncora de um dos bailes mais populares do país. Rápidos, os paulistas adotaram a inovação em Ai Pai Para, de MC Keron, e Agora É Tudo Meu, parceria de Kevinho com Dennis. No front pop, Kevinho se uniu a Anitta na faixa Terremoto, lançada para o Carnaval. Ao ver até gringos caindo no pancadão, um funkeiro resumiu o momento: “Nóis ganhou o mundo”.
Publicado em VEJA de 13 de fevereiro de 2019, edição nº 2621
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