O espantoso fenômeno da ressurreição dos velhos hits
A volta de Kate Bush às paradas é o caso mais recente de uma tendência que se tornou comum nos últimos anos
A adolescente Max Mayfield não teve uma infância fácil. Após o divórcio dos pais, a personagem de Stranger Things, série que é um fenômeno juvenil da Netflix, se mudou com a mãe da ensolarada Califórnia para a provinciana Hawkins, em Indiana. Na cidade, teve a primeira desilusão amorosa. A melhor amiga e confidente se mudou para outro estado. Para piorar, o irmão mais velho morreu tragicamente. Sem dinheiro, ela e a mãe agora moram em um trailer. O único alento da garota é um aparelho de walkman (velharia que então revolucionava o jeito de consumir música), no qual ouve sem parar sua canção favorita: Running Up That Hill.
Kate Bush – Remastered In Vinyl IV
Lançada em 1985, a criação da britânica Kate Bush atingiu na época o terceiro lugar das paradas no Reino Unido e apenas um modesto trigésimo lugar nos Estados Unidos. Trinta e sete anos depois, a típica faixa dos anos 1980, embalada por sintetizadores e pelos agudos dramáticos de Kate, experimenta um sucesso sem precedentes ao ser alavancada, justamente, por Stranger Things. Desde maio, quando a quarta temporada foi ao ar, a música atingiu o primeiro lugar na Inglaterra, o quarto nos Estados Unidos e está em primeiro no Spotify mundial, com cerca de 1 milhão de execuções diárias. O resgate da canção também significará dinheiro no bolso da cantora: hoje aos 63 anos, ela deverá ganhar 1 milhão de libras (cerca de 6,3 milhões de reais) apenas em direitos autorais.
Kate Bush – The Sensual World [Disco de Vinil]
A ressurreição de Kate Bush é o caso mais recente de um fenômeno que se tornou comum nos últimos anos: o retorno às paradas de músicas lançadas décadas atrás, motivado pelo uso das canções nas trilhas sonoras de filmes, séries de TV, videogames — e, claro, nas onipresentes redes sociais. Outro exemplo simbólico é a canção Dreams, do Fleetwood Mac. O clássico da fossa roqueira é de 1977, mas voltou ao topo dos rankings após viralizar em 2020 no TikTok, com o vídeo de um skatista ouvindo a música enquanto bebia suco de cranberry. A rede chinesa também foi responsável pelo ressurgimento do Abba. Graças aos vídeos de adolescentes dançando músicas do grupo sueco, os quatro integrantes voltaram a se reunir e, no ano passado, quatro décadas após a separação, lançaram um disco de inéditas. Nos cinemas, o filme The Batman, com Robert Pattinson, tirou do limbo a soturna Something in the Way, do Nirvana. Na época do lançamento, há 31 anos, ela não entrou nas paradas. Agora, fez sua estreia tardia na Billboard.
O fato de tantas canções de décadas atrás retornarem às paradas e caírem no gosto da nova geração se deve principalmente à maneira como consumimos música hoje. A facilidade para encontrar uma obra lançada há cinquenta anos ou outra que saiu ontem tornou-se a mesma: basta digitar no celular o título e os serviços de streaming fazem o resto. Depois disso, os algoritmos entram em ação e o mesmo mecanismo que alimenta um hit atual passa a trabalhar também para “bombar” o antigo. Coisa de vinte anos atrás, caso uma música entrasse numa trilha sonora, o fã precisaria ir atrás do CD (e, se o título fosse antigo, seria duro encontrá-lo nas lojas).
Hoje, além da facilidade de acesso, as vitrines se multiplicam. Games como Guitar Hero ou Rock Band ajudaram a reviver hits de bandas de rock dos anos 70 e 80. Agora, foi a vez do Guns N’Roses voltar às paradas nos Estados Unidos após Sweet Child O’ Mine ser usada no trailer de Thor: Amor e Trovão — e olha que a superprodução da Marvel ainda nem estreou. Para os artistas do passado, a chance de ser tirado do fundo do baú nunca foi tão concreta.
Publicado em VEJA de 29 de junho de 2022, edição nº 2795
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