Black Friday: Revista em casa a partir de 8,90/semana
Continua após publicidade

Novo Mundo: o que é real e ficção na novela

Com sua combinação de figurões reais da pátria e invenciones extravagantes, a novela das seis testa os limites da recriação ficcional do passado

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 26 abr 2017, 19h20

A vinda da princesa austríaca Leopoldina ao Brasil, em 1817, foi recriada com luxo no primeiro capítulo da novela Novo Mundo. Vivida por Leticia Colin, a futura esposa de dom Pedro I ganha festa de despedida num palácio europeu, com show de artistas mambembes e distribuição de barras de ouro à bandejada para os convivas. Para gravar a sequência da nova trama das 6, em exibição há três semanas, a Globo fez cair neve artificial sobre carruagens e construiu uma réplica da caravela portuguesa que, pouco depois do banquete, conduziria Leopoldina ao Rio de Janeiro. Tudo impecável, exceto por um detalhe: quase nada disso consta dos livros de história. A festa para Leopoldina ocorreu, na verdade, em Viena, cidade natal da princesa. A oferta de barras de ouro à nobreza austríaca foi feita por meios mais protocolares — não se tem notícia da distribuição dos mimos na festa, como se fossem bem-casados. Há também um descompasso temporal: entre sua saída de Viena e o embarque no porto italiano de Livorno, Leopoldina amargou semanas de espera na casa de uma irmã, em Parma. Embora não fique claro na novela, os autores Theresa Falcão e Alessandro Marson garantem que sua festa ficcional aconteceu na mesma Parma — evitando assim o deslize de inventar um porto em Viena. Mesmo assim, é preciso ser crédulo: a distância entre Parma e Livorno é de mais de 200 quilômetros, o que tornaria espantoso o embarque da princesa logo na manhã seguinte. Por fim, há um tropeço meteorológico. “Era verão e fazia um calor absurdo na Itália. Neve não faz sentido”, esclarece o historiador Paulo Rezzutti, autor de uma recém-lançada biografia da princesa. Com liberdades assim, Novo Mundo vem engrossar um filão robusto: a teledramaturgia que explora o que se pode chamar de história alternativa.

arte-festa-despedida
(Divulgação/TV Globo)

Se a fé irracional em notícias falsas veiculadas nas redes sociais instituiu a era da pós-verdade, eis que um certo equivalente vigora hoje na televisão: é a idade de ouro da “pós-história”. O exemplo mais acabado é a série americana Outlander, fantasia romântica de enorme sucesso em que uma mocinha viaja no tempo para interagir (inclusive sexualmente) com vultos históricos da Escócia do século XVIII. Com Novo Mundo, a Globo faz a pós-história à brasileira. Leopoldina, dom Pedro (Caio Castro) e sua amante, a marquesa de Santos (Agatha Moreira), formam um triângulo amoroso — noção em si duvidosa, já que casamentos de príncipes e princesas eram fruto de arranjos políticos, não de paixão. “Sentimentos não faziam parte da agenda. Leopoldina até se apaixona, mas não é correspondida. Para dom Pedro, ela era apenas a mãe de seus filhos”, ensina a historiadora Mary del Priore. Ao lado do trio e de outras figuras reais do passado pululam personagens puramente ficcionais que influirão até na proclamação da Independência — notadamente, o par romântico formado pela inglesa Anna (Isabelle Drummond) e o brasileiro Joaquim (Chay Suede).

arte-viagem-brasil
(Divulgação/TV Globo)

É óbvio que ceder às licenças poéticas é imperativo na ficção. “O trunfo é recontar a história em ritmo de aventura de capa e espada. Não estamos fazendo documentário no canal Futura”, diz Theresa Falcão. O fato de se tratar do horário das 6 também justificaria, vá lá, a opção por tornar o triângulo dom Pedro-Leopoldina-marquesa de Santos tão cor-de-rosa: a conduta abusiva do príncipe em relação à esposa e a lascívia com que se entregava à amante seriam proibitivos nessa faixa da TV aberta.

Continua após a publicidade

Isso não exime a empreitada pós-­histórica da culpa por jogar o espectador num terreno movediço: no meio de tanta informação, como separar as baboseiras dos fatos? “Desde que a novela começou, não paro de receber consultas de pessoas querendo saber se esse ou aquele detalhe fazem sentido”, diz Paulo Rezzutti. Às vezes, isso pode mesmo fundir a cuca. Seria um anacronismo mostrar gente de óculos escuros no Rio do começo do século XIX? Não. Navegantes e oficiais europeus como o fictício capitão inglês Thomas Johnson (Gabriel Braga Nunes) já os usavam para amenizar os efeitos do sol tropical. O mesmo não se pode dizer do flagrante de um celular numa cena de Isabelle Drummond: aquilo foi só um vacilo violento da produção da Globo (e nem vamos comentar a balbúrdia dadaísta de sotaques lusitano, carioca, alemão).

arte-amante-amigo
(Divulgação/TV Globo)

Enquanto a controvérsia fica nesses pormenores ou nas simplificações em nome do ritmo da trama, tudo bem. É um mal menor resumir vários eventos em uma única festa de despedida de Leopoldina. O problema é quando a ficção cruza uma linha capaz de abalar um pilar intransponível da história ou da geografia: neve em pleno verão italiano é demais. E é ainda mais enganoso moldar a história à visão “antropoliticamente correta” de hoje. A novela avança esse sinal ao mostrar dom Pedro como um amigão da causa indígena. “Não temos notícia de qualquer interesse dele por índios”, diz Mary del Priore.

Continua após a publicidade

O mérito desse tipo de ficção ainda é o de estimular a curiosidade sobre a história. “Gente que nem sabia que o Brasil teve príncipes e princesas passou a se interessar”, diz Rezzutti. E para o espectador que prefere desligar seu sensor histórico e embarcar na fantasia abilolada, o guia ideal é a personagem de Ingrid Guimarães. Como vários outros tipos em cena, a divertida golpista portuguesa Elvira Matamouros ilustra o destemor de Novo Mundo em mostrar o lado feio da história. “A gente fica desprovido de vaidade. Estou adorando aparecer sempre suada, de cabelo ensebado”, diz Ingrid. A maior marca da personagem é ser totalmente sem noção. “É incrível como ela acredita na sua realidade paralela”, diz. A ópera pós-histórica tem aí seu melhor resumo.

Compre a edição desta semana de VEJA no iOS, Android ou nas bancas. E aproveite: todas as edições de VEJA Digital por 1 mês grátis no Go Read.

 

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Semana Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (a partir de R$ 8,90 por revista)

a partir de 35,60/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.