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“Nem sempre quem grita tem razão”, diz estudioso dos “cancelamentos”

O professor de filosofia Filipe Campello, uma das mentes nacionais voltadas à compreensão do fenômeno, explica os mecanismos que movem o linchamento virtual

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 jul 2020, 13h09 - Publicado em 24 jul 2020, 12h45

O professor de filosofia Filipe Campello é um dos intelectuais brasileiros mais atentos ao fenômeno da “cultura do cancelamento” e seus efeitos na sociedade e na democracia. Coordenador do Núcleo de Estudos em Ética e Política da Universidade Federal de Pernambuco, doutor em filosofia pela Universidade de Frankfurt e com pós-doutorado na New School for Social Research, de Nova York, ele acredita que as razões desse tipo de manifestação são compreensíveis – com as redes sociais, pessoas que nunca tiveram voz agora têm a chance de gritar. Mas os cancelamentos ganharam um caráter de tribunal de justiçamento que é francamente autoritário e nocivo ao debate público. “Regredimos a uma forma de punição social baseada no moralismo e no fazer justiça com as próprias mãos, semelhante à lógica de faroeste”, afirma Campello. Nessa entrevista a VEJA, o estudioso dá sua visão sobre o tema:

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Os ‘cancelados’ nas redes sociais
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Três semanas atrás, 150 intelectuais, artistas e autores de todo o espectro político assinaram uma carta pedindo um basta à cultura do “cancelamento”. Você concorda que essa prática deve ser condenada?

Em primeiro lugar, acho que vale a pena tentar entender melhor o que tem sido chamado de cultura do cancelamento. Por um lado, o cancelamento pode ser visto como um sintoma, uma espécie de reação de quem historicamente não teve a mesma possibilidade de dar voz ao que pensa. É como se fosse uma válvula de escape, e é compreensível que indivíduos que se sintam injustiçados, e que historicamente não encontravam espaço para falar, tentem encontrar um meio de dar voz a essas demandas. É como alguém que se cansa de tentar falar sem ser ouvido e então tem que gritar. A questão é que nem sempre quem grita tem razão. E como vamos saber quem tem razão? Eu tenho direito a ter minha própria opinião sobre o que é certo ou errado, mas isso não deve ser o que orienta o escrutínio para condenar e punir o outro. A solução encontrada pelas democracias liberais – para dizer de maneira sucinta – foi a de encontrar nas instituições da justiça um tipo de balizamento que permitisse a convivência entre um pluralismo de opiniões e modos de vida. Ou seja, uma visão particular do que é o certo para mim não deveria pautar o que é o justo para todos — precisamente porque, numa democracia, há várias outras concepções de bem conflitantes entre si. O que a cultura do cancelamento enquanto sintoma parece querer dizer é que há falhas nesse processo. Mas a solução que acaba encontrando, como entendo, é a de substituir essas garantias jurídicas por uma espécie de moralismo persecutório. Este é o grande risco posto pela cultura do cancelamento: numa sociedade que se pretende plural e democrática, quem possui a régua moral?

Quais mecanismos sociais e psicológicos levam a esse frenesi pelos cancelamentos? É possível traçar paralelos com outros momentos da história?

Práticas de cancelamento certamente não são novas. Basta lembrarmos das práticas do linchamento que em certa medida perpassam nossa construção social. Sempre existiram tanto formas de punição social baseadas em uma espécie de moralismo quanto meios de silenciamento. É isso que boa parte dos que de algum modo defendem a cultura do cancelamento tenta dizer. Entendo que são legítimas as reivindicações pelo direito de ter voz e ser ouvido, ou que, enquanto depositamos nossa confiança no sistema penal, encontramos inúmeras falhas que impedem a lisura das instituições da justiça. Mas reconhecer isso e fazer essa crítica não significa dizer que precisamos adotar um tipo de lógica com os mesmos traços extrajudiciais. Tenho tentado defender que sentimentos como raiva ou indignação são compreensíveis, mas a questão é o que fazer com eles. A solução encontrada para expressar esse sentimento revanchista acaba por recair nas mesmas práticas que pretende criticar. A consequência disso é que regredimos a uma forma de punição social baseada no moralismo e no fazer justiça com as próprias mãos semelhante à lógica de faroeste – com cartazes de procura-se vivo ou morto – ou ainda uma catarse coletiva quando um vilarejo se reunia para assistir a um herege queimado na fogueira em praça pública.

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Qual é, afinal, o peso das redes sociais no fenômeno?

Veja, eu não acho a ampliação do debate público pelas redes por si só negativa, assim como também sou contra qualquer forma de censura prévia. Nisso eu concordo somente em parte com aquela conhecida formulação de Umberto Eco de que as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis. É verdade que elas deram audiência para a verborragia de um sem número de terraplanistas, mas também é verdade que com as redes quem historicamente era por outros motivos silenciado encontra um espaço para dizer o que pensa. Há aí ao menos dois problemas. O primeiro é quando confundimos, para usar uma distinção que faziam os gregos, entre doxa como opinião e episteme – um tipo de conhecimento como aquele pretendido pela ciência. A mera opinião pessoal não deve automaticamente atingir o estatuto de verdade. O segundo problema – que é mais sério – é que o alcance de uma acusação nas redes sociais é imponderável: basta um post condenatório (ou difamatório, não se pode saber a priori) viralizar para que alguém se torne automaticamente culpado, pouco importando se depois, na esfera jurídica, seja inocentado. Se antes as pessoas poderiam ser canceladas por boatos, hoje um post parece adquirir a priori um sentido de verdade, facilmente assumindo o lugar do fato mesmo sem sê-lo. Alias, esse é o paradoxo da pós-verdade: não é que haja várias verdades continuamente disputadas, mas a pretensão de uma única verdade que se impõe. E ela pode não passar de um boato.

Há diferenças entre os cancelamentos promovidos pela direita ou esquerda?

Sinceramente, penso que nem sequer vale a pena gastar muita energia tentando mostrar como o tipo de discurso propagado por Trump ou Bolsonaro são exemplos disso – agitando o ódio e querendo silenciar quem pensa diferente. Essa é uma constatação que me parece ser compartilhada desde pessoas mais à esquerda até liberais (o bolsonarismo envolve um perfil que foge a qualquer variação desse espectro político). O que causa estranheza é esse tipo de atitude estar sendo propagada por setores ditos progressistas. A prática do cancelamento, nesses casos, acaba recaindo numa armadilha, uma vez que a lógica punitivista e extrajudicial é típica de uma postura de ultradireita que beira traços fascistas. É por isso que eu uso o termo “paradoxo”, pois ele acaba se utilizando de tudo aquilo que sempre foi objeto de crítica das políticas identitárias: uma lógica persecutória, policialesca, que relativiza ou mesmo suspende o direito de defesa ou presunção de inocência.

A propósito, como definir exatamente o que é o cancelamento, separando-o da mera difamação e campanhas negativas, por exemplo? 

Como eu disse, devemos ter garantida nossa liberdade em manifestar nossas opiniões. O que não dá é querermos colocar no mesmo patamar liberdade de expressão e discurso de ódio. A razão disso é que o discurso de ódio – enquanto ataca quem é ou pensa diferente – se coloca fundamentalmente contra a liberdade. Ele é, portanto, autoritário, minando justamente a liberdade pretendida pelo pluralismo democrático. Mas o que tem acontecido com essas práticas do cancelamento é que não somente tem se tentado combater o discurso de ódio – que certamente não pode se blindar por trás de um recurso ilimitado à liberdade de expressão – como também se tem perseguido e coibido a diversidade de opiniões. O efeito colateral disso é um tiro no pé: tanto ganha quem quer banalizar discursos que são explicitamente de ódio contra certos grupos, como perde quem tenta defender a pluralidade própria da democracia. No fim, acaba prevalecendo o autoritarismo.

O que chama atenção, principalmente nos cancelamentos “à esquerda”, é a condenação de condutas em nome “do bem”, de causas supostamente acima de contestação. O que explica isso?

Grande parte das críticas mais à esquerda são ligadas sobretudo à questão identitária. Mas me parece haver uma certa confusão entre, por um lado, a questão do cancelamento e, por outro, o debate sobre pautas identitárias. Em um artigo que escrevi sobre isso, tentei mostrar que a cultura do cancelamento deixa de lado três aspectos que historicamente caracterizaram os movimentos identitários: primeiramente, o deslocamento da crítica centrada na noção de indivíduo para a crítica que se torna sobretudo social ou estrutural; em segundo lugar, a importância da luta por reconhecimento de direitos; e, por fim, a noção de que nossas visões de mundo são atravessadas por contextos sociais que pode ser passível de mudança – ou seja, que não possuímos uma identidade rígida, mas que sempre podemos aprender a rever nossas posições. O que proponho no artigo é que a cultura do cancelamento acaba entrando em curto-circuito com essas três características: no lugar de uma crítica social, passa a predominar uma lógica de cancelamento dirigida aos próprios indivíduos; em vez de reconhecimento de direitos, o punitivismo baseado numa lógica moralista; e, ao contrário da possibilidade de aprendizado e mudança, a pressuposição de uma espécie de essencialismo atemporal.

Outro traço marcante dos cancelamentos é a tendência de não perdoar nem mesmo personagens históricos que viveram em outra época e contexto, de Cristovão Colombo a Churchill. Faz sentido esse revisionismo?

Esse me parece ser um outro paradoxo da crítica progressista: ela deixa de voltar seu foco ao que entende por “estrutural”, ou seja, que há práticas sociais que de algum modo antecede nossa constituição como indivíduos. Uma crítica a um indivíduo sem consideração deste contexto corre o risco de ser anacrônica. E isso não significa tolher a sua responsabilidade, mas que seria equivocado querer julgar sua visão de mundo de acordo com a que temos hoje. Podemos, claro, criticar o passado e aprender com ele, mas não podemos mudá-lo. Tomemos a polêmica envolvendo as estátuas e a questão do revisionismo histórico. Não acho que devemos negligenciar que, enquanto estão em espaços públicos, estátuas trazem um significado simbólico enquanto continuam lá materialmente presentes, e que, por isso, não representam apenas uma imagem do passado, senão que reverberam no presente, dando uma certa legitimidade ao que ela representa. A discussão sobre o seu simbolismo, portanto, é bastante intricado. Mas também chegamos ao ponto de vermos um abaixo-assinado pedindo a demolição da torre de Belém por conta de sua relação com o colonialismo. Esse é o ponto da crítica estrutural: bem ou mal, não é possível dissociar a construção do Brasil de seu passado colonial, e criticar estruturalmente isso significa ter em vista tudo que atravessou a constituição de nosso presente. Se quisermos apagar tudo que remeta a um passado colonial – com tudo aquilo que hoje podemos, com razão, criticar – não sei o que sobraria.

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