‘Não somos revolucionários’, diz vocalista do My Bloody Valentine
Em entrevista a VEJA, o cantor e guitarrista Kevin Shields fala sobre novo álbum de inéditas e de como o termo shoegazer foi resgatado no dias de hoje
Que vê o americano radicado irlandês Kevin Shields, de 57 anos, com seu jeito tranquilão e vasto cabelos brancos caminhando pelas ruas de Dublim, poderia facilmente confundi-lo com algum profissional de TI, dos muitos que vivem na cidade. Shields, afinal, tinha tudo para não ser um ídolo do rock e, sim, um nerd da tecnologia. No entanto, ao lado de Bilinda Butcher, Deb Goodge e Colm Ó Cíosóig, causou uma revolução musical no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 com seu jeito de tocar guitarra, que era completamente oposto aos espalhafatosos glams, posers e afins, de Los Angeles. Sem afetações, eles subiam ao palco – de preferência alheios à plateia, e tocavam absortos olhando para o chão. Veio daí o apelido um tanto jocoso de shoegazer (olhando para os calçados, na tradução literal), para classificar o som que My Bloody Valentine, a banda fundada por eles, fazia. Nos anos seguintes, o som – e a postura no palco – inspirariam uma geração inteira de artistas, chamados simplesmente de indies.
Em um lapso incompreensível para os fãs, até esta quinta-feira, 1º, os quatro álbuns da banda não estavam disponíveis em absolutamente nenhuma plataforma de streaming. Para compensar, o grupo coloca agora à disposição os discos Isn’t Anything (1988), Loveless (1991), EP’s 1988-1991 (de 2012, agora com faixas raras) e m b v (2013), remasterizados e com versões em altíssima resolução e sem compactação sonora.
Para divulgar o lançamento, Kevin Shields, conversou com VEJA por Zoom apenas em áudio, em um bate-papo de quase uma hora de duração. Ele contou que o lançamento dos álbuns antigos no streaming precedem dois novos álbuns de inéditas, gestado há alguns anos. Falou ainda da influência que as bandas punk, como Buzzcocks, tiveram em sua formação musical, do preconceito que o termo shoegazer carrega e do prazer de ouvir música saindo dos minúsculos alto-falantes dos celulares em contraste com seus shows, famosos por serem altos e barulhentos.
A ausência das músicas do My Bloody Valentine no streaming fez com que os fãs imaginassem que vocês simplesmente não gostavam da qualidade do som digital. É verdade? Eu escuto música digital, eu admito. Mais da metade da música que escuto hoje vem da internet, simplesmente porque ela está disponível. Se sai alguma coisa nova, é claro que vou checar antes de comprar. É mais ou menos como eu fazia quando ouvíamos as rádios. A não ser que você seja um superfã, aí você compra de qualquer forma. Mas, eu gosto de ouvir direto no meu telefone. Não uso fone de ouvidos. Curioso, não é? Eu me apaixonei por algumas músicas assim. E aí eu comprei o disco e quando ouvi todos os graves, agudos e a produção completa, não gostei muito. É claro que existem músicas que você quer ouvir com a melhor qualidade possível. Mas eu vou continuar gostando e ouvindo músicas direto no meu celular. São experiencias diferentes.
Em quase 40 anos de banda, vocês lançaram apenas quatro discos. Você atribui essa produção escassa ao perfeccionismo? Não. Era mais devido às coisas que aconteceram na vida. Em m b v, por exemplo, começamos a gravar em 1996 e foram seis meses de trabalho. Daí acabou o financiamento. A companhia disse que não iria dar dinheiro para nada. Esperamos para lançar e ver se entraria dinheiro. Depois de alguns anos, finalmente, conseguimos pagar pelo álbum com dinheiro dos nossos bolsos, somente depois que fizemos uma turnê em 2008 e 2009. Quer dizer, trabalhamos uns seis meses no álbum. E depois mais um ano na mixagem, com esse imenso gap de tempo no meio.
A disponibilização dos álbuns antigos do My Bloody Valentine significa que o novo álbum, prometido por vocês em 2018, finalmente vai sair? Estamos trabalhando nisso. Tivemos alguns probleminhas, mas superamos. Estamos 100% independentes. Somente eu e minha esposa trabalhando no estúdio. Acho que muito em breve vamos finalizar esse álbum. Tudo novo. A ideia é essa: estamos lançando no streaming todos nossos álbuns antigos e as pessoas vão poder ouvir também o mais novo. Toda a ideia por trás disso é fazer nova música. É a grande razão desses lançamentos.
Como avalia a influência que My Bloody Valentine teve na música indie? Não só na música indie, como em vários gêneros. Temos fãs no metal, no folk, na música clássica. A música afeta as pessoas de maneira diferente. Sempre tivemos um tipo de atitude muito própria que sentimos que teve um certo impacto em algumas pessoas. Dizem que fomos pioneiros, mas isso não tem nada a ver com a gente. As coisas se desenvolveram sozinhas: música eletrônica, técnicas de compressão, pitch-bending. Nada disso veio de nós.
Você, então, rejeita o rótulo que o My Bloody Valentine ganhou de ser uma banda revolucionária? Eu realmente não acho que somos revolucionários. Acho que todas as bandas que surgiram conosco também tiveram seus impactos. Eu era apenas um fã de música. A única coisa que eu queria era encontrar um lugar confortável. Algumas vezes era confortável e excitante ao mesmo tempo. Acho que as bandas daquela época eram paralelas à nossa. Acho que elas foram bem menos influenciadas por nós, como a mídia costuma cravar. Eu fico feliz com a posição que eu tenho na música. Mas ainda tem coisas que não atingi. Tenho muitas coisas para trabalhar. Não parei. É a minha jornada pessoal.
O termo “shoegazer” ajudou ou atrapalhou a banda? Ajudou e atrapalhou. Fez mais pessoas procurarem saber sobre a gente. Mas machucou porque não conseguimos ganhar muito dinheiro vendendo álbuns como uma banda tradicional. Quando alguém fala no termo “shoegazer”, meio que ajuda porque as pessoas querem ir ouvir a gente ao vivo, por outro lado, podem desistir de assistir porque já tem uma ideia preconcebida sobre o termo. E talvez elas não tenham ouvido direito. O conceito atrapalha porque as pessoas leram por aí que banda shoegazer usa muitos efeitos de pedais, muito reverbs e outras coisas, em vez de apenas ouvirem. Nesse sentido, eu não gosto. Mas não me importo muito. Não é um nome ruim e eu fico feliz porque surgiram outras bandas que gostaram do termo e também passaram a se chamar shoegazer. São boas bandas, que surgiram nos anos 2000. Não foi uma fase passageira. Eu ficaria muito feliz se o termo não fosse mais usado, mas, aí vem novas bandas 20 anos depois da nossa e elas estão fazendo coisas interessantíssimas e usando a nomenclatura de maneira positiva.
Em 2013, num show em Londres, vocês entregaram protetores auriculares para as pessoas. Só dá para ouvir a banda se for muito alto? Queremos dar liberdade para as pessoas terem uma experiência que é muito física. Se tocarmos o som muito baixo, as pessoas não vão ter essa experiência. Qual é a razão de ir em um show ao vivo e não sentir a vibração? Um volume de 110 a 150 decibéis pode causar danos na audição. O que queremos é dar opção às pessoas, sem causar danos auditivos. Vamos tocar na altura que achamos correto, mas sem deixar ninguém surdo. Além disso, quando as pessoas chegaram no show e viram todos aqueles cartazes oferecendo protetores auriculares, elas pensaram que seria algo meio que perigoso. Mas não somos tão perigosos quanto outras bandas. Só tocamos muito alto.
Como a atitude do punk influenciou você e a sua postura no palco? Quando eu era criança, gostava de ouvir The Beatles, Monkees, Jacksons Five. Para mim, parecia que eles faziam música sem esforço. Depois, a música virou outra coisa, algo em que o rockstar era mais importante do que a música. Isso era entendiante para mim. Ver alguém tocando guitarra e fazendo movimentos estranhos com o corpo era realmente entediante. Então, veio o punk. Lembro de ver o Buzzcocks no Top of the Pops, em 1978, e voltar a ter a mesma sensação que eu tive quando vi os Beatles. Era melódico e poderoso. O jeito que eles tocavam não era de rockstar. Eles simplesmente tocavam guitarra e isso causou um efeito incrível em mim.