‘Não creio que minha presença será normalizada’, diz Camila Sosa Villada
Atriz e escritora trans argentina é uma das convidadas de A Feira do Livro 2024, em São Paulo, e falará no evento neste domingo, 30
Convidada d’A Feira do Livro 2024, que vai desta sexta, 29, ao dia 7 de julho, no estádio do Pacaembu, em São Paulo, a atriz e escritora argentina Camila Sosa Villada vem promover três livros, lançados recentemente: a coletânea de poemas e textos curtos A Namorada de Sandro (Tusquets), o ensaio autobiográfico A Viagem Inútil (Fósforo) e o romance Tese Sobre uma Domesticação (Companhia das Letras). Em praticamente todos ela explora a construção da sua identidade como mulher trans através da memória e da experiência pessoal. No domingo, 30, às 19h, no Palco da Praça, ela falará sobre literatura travesti e os títulos que está lançando na mesa Transescrita, que terá mediação da jornalista Adriana Ferreira Silva.
Em entrevista a VEJA, Camila disse, entre outras coisas, que a verdadeira identidade travesti, a existência travesti, é latino-americana. “Estávamos aqui antes da chegada dos espanhóis”, disse ela. “As tribos indígenas da América Latina tinham figuras que eram travestis. Os mapuche machi eram travestis, Os Incas tinham travestis. Um número enorme de comunidades indígenas em toda a América Latina foram povoadas por travestis que foram posteriormente exterminadas pela Igreja Católica sob a figura de pecado nefasto. Mas estamos aqui há muitos séculos. E fomos assassinadas, fomos perseguidas, fomos silenciadas. É hora de recuperar o nosso espaço na história, o nosso espaço na Terra. Porque sempre estivemos aqui.”
A seguir, os principais trechos da conversa, concedida por Camila desde Córdoba, na Argentina, por chamada de vídeo.
Em A Namorada do Sandro e Viagem Inútil você explora temas relacionados à memória, à identidade e à busca de si mesma. Poderia explicar como essas duas obras se conectam em termos de narrativa e temas?
São meus dois primeiros livros. Então, foram uma expedição, uma viagem interior. Era absolutamente necessário fazê-lo, para depois ousar mostrar algo mais da minha escrita. Além disso, era o que eu tinha em mãos naquele momento, era o que eu tinha de mais íntimo para escrever. Coisas que estavam efervescentes na Argentina. Questões políticas e sociais relativas às travestis.
Por que você alterna entre mulher trans e travesti para se autodenominar?
Eu prefiro sempre a palavra travesti. Já falei sobre isso. A palavra travesti é como a palavra saudade para vocês — pelo menos na Argentina. Não tem tradução. Você pode pensar, mas não é só um homem que se veste de mulher? Não é só isso, é uma identidade que se alimenta da experiência. Simone de Beauvoir teria dito: “Você não nasce mulher, você se torna uma”. Pois bem, da mesma forma, você não nasce travesti, você se torna travesti.
Qual a importância dessa diferenciação?
É uma discussão interessante, porque, nos últimos anos, com o aparecimento da lei de identidade de gênero, e com o aparecimento da “pinkwashing“, aquela coisa de lavar tudo de rosa [para atenuar o discurso]. Muitas pessoas embarcaram neste trem. E se chamam a si mesmos de trans, trans não binário, trans não sei o quê, trans não sei quanto. Isso parece completamente antiliterário para mim. Gosto da palavra travesti. É muito mais poético, diz muito mais coisas numa só palavra. Dizer mulheres trans me desanima, me deserotiza, tira minha inspiração. Se eu escrever que “a mulher trans saiu de casa às cinco da manhã” não é a mesma coisa que dizer que “a travesti foi embora”.
A literatura tem sido historicamente dominada por vozes cisgênero. Quão importante é para você, como autora trans, ocupar um espaço nesse campo e contribuir para a representação da comunidade LGBTQIA+ na literatura?
Não creio que minha presença será normalizada. Pelo contrário, sempre penso que é como se fosse um espinho que cravou no calcanhar no último minuto e está escorrendo alguma coisa. Sempre tenho a sensação de estar um pouco deslocada, de não pertencer a esses ambientes. Quando vou a uma feira do livro, quando vou a um festival, até quando me encontro com meus editores. Sempre tenho a sensação de que esperam que eu vou falar alguma coisa grosseira, algum palavrão. Ou que vou jogar alguma coisa, quebrar alguns copos. Em um lugar suposto ser literatura, que é um terreno que para muitos é sagrado. Então, não acho que isso será normalizado.
Seu trabalho frequentemente questiona as categorias tradicionais de gênero. Você acha que a identidade de gênero é algo que precisa ser definido e rotulado?
Acredito que os melhores livros são livros inclassificáveis, escritos indecentemente, dirigidos para fora e não para dentro, ou seja, são escritos fora de um escritor. Suponho que os livros ideais sejam aqueles em que aquele escritor desaparece e apenas a palavra permanece. Para isso acho que preciso de algum tempo. Porque ainda não consigo matar aquele escritor.
É o que acontece em Tese Sobre uma Domesticação?
Em Tese Sobre uma Domesticação, [o meu papel como escritora] pode ter começado a desaparecer atrás do narrador. Mas como a protagonista é trans, é travesti, fica um pouco complicado, porque imediatamente a relacionam comigo. E também é [realmente] muito parecida comigo. Então, ainda tenho mais alguns livros para “me matar”.
Isso tem um pouco de posicionamento político. Eu acho que naquele fiapo, naquele fio da história, que dá início ao romance, você tem uma posição.
Na verdade, é uma faca de dois gumes. Lembro o filme Blade Runner 2049, o último dirigido por Dennis Villaneuve. Supunha-se que a homossexualidade, o travestismo, eram o fim da família, o fim da raça humana. O que eles queriam era acabar com a natalidade. Como se o nascimento também fosse uma coisa boa para um planeta como este. Então, de repente, começaram a surgir famílias que cuidam de crianças trazidas a este mundo e que não tinham outra escolha senão viver em reformatórios, asilos, etc. Sou contra que crianças continuem a nascer. Parece-me que temos que parar com o desejo de alcançar a realização através das crianças, e pensar se este é um mundo adequado para trazer as crianças ao mundo. Não há comida, não há água, o clima está piorando, o aquecimento global vai acabar por afundar-nos a todos na água, há cada vez mais doenças, há ameaças de uma terceira, ou uma terceira guerra mundial está em curso. já está acontecendo.
Mas o que propõe, então?
Em vez de trazer crianças ao mundo, vamos garantir que aquelas que estão aqui se divirtam. E acabou. Foi mais ou menos essa a posição que a atriz [travesti] de Tese Sobre uma Domesticação teve quando decidiu adotar e não ir para os Estados Unidos alugar um útero, para pagar não sei quantos milhares de dólares para aquelas meninas. Isso é algo muito comum, fizeram muito na Argentina, principalmente no show business, muitos atores e atrizes. Você pode fazer o que quiser da sua vida, mas me parece um pouco assustador e distópico. A atriz decide adotar uma criança porque não quer passar por essa provação.
O que está faltando, Camila?
A vulnerabilidade das travestis na América Latina é uma questão de classe, tem a ver com dinheiro, tem a ver com pobreza. Parece-me que, para o mundo alcançar o equilíbrio, não é de baixo para cima. Para construir um mundo mais justo, precisamos de uma mudança estrutural. Não basta que as classes populares subam na escala social, é preciso que as elites percam seus privilégios. E esse é o grande problema, pelo menos na América Latina, porque as pessoas não querem perder nenhum privilégio. Não há recursos para que esses privilégios sejam distribuídos igualmente por toda a população. Caso contrário, as pessoas que estão aqui começam a perder privilégios e percebem que vivem com muito menos.