“Na escola de música, eu era o único preto”
O mineiro Breno Bartolomeu, 19 anos, venceu abandono e pobreza para virar um dos mais jovens regentes do país
Há um mês, tornei-me um dos mais jovens músicos do país a reger uma orquestra. Aos 19 anos, foi um sonho quando ergui a batuta à frente da Orquestra Mineira de Câmara, formada por quarenta músicos, muitos deles com mais tempo de carreira que eu de vida. Na ocasião, celebramos também os 25 anos de estrada das cantoras do Trio Amaranto. A apresentação foi uma vitória pessoal. Nasci em Belo Horizonte, em Minas. Até os 5, vivia em um abrigo. Sei pouca coisa do meu passado, mas minha vida mudou quando fui adotado pelos meus pais, os professores públicos Noêmia, de 45 anos, e Pedro, de 42. As primeiras lembranças que tenho daqueles dias são sempre relacionadas à música, seja das canções que eles ouviam em casa, como as de Chico Buarque, Djavan e Milton Nascimento, seja do velho violão que meu pai sempre tocou, instrumento herdado do meu avô. Aos 7 anos, eles perceberam que eu tinha aptidão para a música, pois absorvia com facilidade letra e melodia de várias canções, inclusive Águas de Março, que aprendi a cantar de cor, e me matricularam no Centro de Formação Artística e Tecnológica (Cefart). Aos 9 anos, eu já fazia parte do coral infantojuvenil do Palácio das Artes. Atualmente, estou cursando canto erudito, piano popular, regência de coral e orquestral na Universidade Federal de Minas Gerais, a UFMG.
Chegar aonde cheguei não foi fácil. Minha família é humilde e vivemos em um bairro afastado de Contagem, na Grande Belo Horizonte. Toda minha formação foi feita em escolas públicas e, para comprar os instrumentos e materiais para o estudo, minha família realizou inúmeras vaquinhas entre amigos e familiares. Graças a Deus, sempre pude contar com a ajuda da família e nunca me faltou nada. Tive a sorte de contar também com a ajuda do cantor e músico Flávio Venturini. Durante a pandemia, ele anunciou a venda de seu piano e eu, despretensiosamente, mandei uma mensagem perguntando o preço, sem nunca ter falado com ele na vida. Para minha surpresa, fui convidado para ir à sua casa e ele me presenteou com o instrumento. Ele me disse que não queria que o piano se tornasse um artigo de luxo na casa de alguém, e sim um instrumento para propagar a música. Meu tio Sebastião foi quem me ajudou a transportar o piano em seu caminhão, que ele usa para carregar cana-de-açúcar. Hoje, estudo e toco no instrumento que pertenceu ao Flávio, o que é uma honra muito grande para mim.
A partir da minha formação erudita, quero no futuro transformar a orquestra em algo popular. Aposto que, se Beethoven e Bach estivessem vivos, eles iriam querer saber como a música evoluiu. Tenho uma paixão incomensurável pela música erudita e pelo apuro técnico, mas sinto que as influências que tive da música popular, como as de Milton, Gilberto Gil, Chico Buarque e outros grandes mestres, podem me ajudar a popularizar as orquestras. Dessa forma, todos poderão acessá-las, e não apenas a classe alta.
Ter vencido todas essas dificuldades, no entanto, ainda não me ajudou a vencer a pior delas: o racismo. Mesmo sem levantar bandeiras, só de estar na posição de regente, pianista e cantor erudito, sei que já incomodo muita gente. Na minha classe de piano, eu era o único preto. Na turma de canto, também. Tive a felicidade, porém, de fazer grandes amigos nas escolas por onde passei, já que entre os artistas não há distinção de cor. Me espelhei ainda em Milton Nascimento, a maior voz do Brasil — que, assim como eu, também é mineiro, negro e adotado. Milton é a força motriz para qualquer cantor negro. Imagino que na época dele as dificuldades foram três vezes maiores que as minhas. Olhar para o exemplo do Milton é ter a certeza de que há luz no caminho que pretendo trilhar nos próximos anos.
Breno Bartolomeu em depoimento dado a Felipe Branco Cruz
Publicado em VEJA de 27 de outubro de 2023, edição nº 2865