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Mostra em SP reconta com maestria a história do samba e seus criadores

Exposição no Instituto Moreira Salles revira o baú do gênero

Por Amanda Capuano Atualizado em 4 jun 2024, 10h14 - Publicado em 27 out 2023, 06h00

Em novembro de 1916, Ernesto dos Santos, o Donga, registrou na Biblioteca Nacional a canção Pelo Telefone, eternizando seu “Ai, ai, ai / É deixar mágoas pra trás, ó rapaz” na música brasileira. Tida como o primeiro samba do país, a composição tem autoria controversa: embora atribuída a Donga e Mauro de Almeida, ela teria sido criada coletivamente nas rodas que aconteciam no quintal de Tia Ciata, baiana que, no início do século XX, abriu as portas de sua casa para encontros de pioneiros do samba carioca, entre eles João da Baiana, Pixinguinha, Donga e Hilário Jovino Ferreira. Com mais de 100 anos, a partitura de Pelo Telefone é um dos tesouros de Pequenas Áfricas, o Rio que o Samba Inventou, exposição do Instituto Moreira Salles, em São Paulo, que recupera as origens do ritmo carioca que virou símbolo da nação.

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COISA DE FAMÍLIA - Tia Amélia do Aragão, a mãe de Donga: a cultura é mantida viva no seio familiar (Instituto Donga/.)

Em cartaz a partir deste sábado, 28, a mostra reúne 380 itens — entre fotografias, memorabilia, pinturas, documentos e peças audiovisuais que destacam a raiz popular do fenômeno e de seus principais personagens. Mais que um gênero musical, o samba moldou um modo de vida forjado a partir da busca por afirmação da cultura negra no Brasil. Daí o nome Pequenas Áfricas: o título é uma referência ao termo criado pelo compositor Heitor dos Prazeres (1898-1966) para se referir à região do Rio habitada por ex-­escravos e seus descendentes no início do século XX. “Ali se formou um modelo de sociabilidade negra que remete às memórias dos antepassados africanos, mas que ganha nova formulação a partir da vida no Rio, e que depois se expande para o Brasil”, explica o sambista e doutor em antropologia Vinicius Natal, um dos curadores da exposição. É dessa mistura de celebrações culturais de matriz africana com a vivência na periferia carioca que nasce o samba.

Breve História do Samba Carioca

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RELÍQUIAS MUSICAIS – À direita, violão de Donga; à esquerda, partitura de sua música pioneira, Pelo Telefone: o primeiro registro oficial do gênero (Coleção José Ramos Tinhorão/Acervo IMS; Instituto Donga/.)
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Não é coincidência, portanto, que boa parte dos pioneiros tenha saído do mesmo lugar: os músicos da época costumavam se reunir nos arredores da Praça Onze, no Centro do Rio, para tocar e dançar. O grupo Oito Batutas surgiu de apresentações na região. Em 1919, Donga e Pixinguinha organizaram uma trupe de dezenove músicos para tocar no Carnaval. A apresentação animou o empresário Isaac Frankel, gerente do Cinema Palais, um dos mais prestigiados da cidade. Encantado, ele pediu à dupla que destacasse oito músicos para tocar regularmente na antessala do cinema. Não demorou para que os Oito Batutas virassem uma atração mais concorrida que os filmes e saíssem em turnê pelo país. Em 1922, o grupo — que era patrocinado pelo ricaço Arnaldo Guinle — se apresentou até em Paris, onde mudou temporariamente de nome. Isso porque, antes de embarcar, Joaquim Silveira Tomás adoeceu e não pode viajar. Como estavam em sete, largaram o Oito e adotaram somente a alcunha de Os Batutas.

Jorge Ben, LP Samba Esquema Novo – Série Clássicos Em Vinil

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NOME DE PESO - Cartola: a mostra reafirma a importância do fundador da Mangueira (Arquivo Diários Associados/Acervo IMS/.)
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Apesar do sucesso rápido, a carreira não foi só flores: com negros em sua composição, a apresentação internacional provocou uma série de reações negativas no Brasil. Além do racismo escancarado, uma parcela preconceituosa e provinciana da sociedade torcia o nariz para o samba. Até então, o gênero e seus instrumentos eram muito ligados à ideia de “vadiagem”, crime que podia render até um mês de cadeia. João da Baiana (1887-1974), por exemplo, foi parado pela polícia diversas vezes e até teve o pandeiro apreendido. Para driblar o preconceito, os sambistas se valiam de artifícios como roupas bem-postas e a profissionalização do ofício. “No século XIX, a maioria da população escravizada não tinha sapato. Paulo da Portela dizia que o sambista deve andar de pés e pescoço ocupados. Ou seja, tem de se apresentar bem para ser respeitado”, conta o curador Natal. Andar com um pandeiro na rua só deixou de ser perigoso mesmo no governo Getúlio Vargas, que deu espaço a elementos da cultura brasileira para exaltar o nacionalismo, que era sua bandeira política.

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MEMÓRIA - Dodô da Portela: a porta-bandeira criou acervo em casa (CDC Grêmio Recreativo Portela/.)

Para além das rodas, palcos e gravadoras, o gênero floresceu também nas escolas de samba. As primeiras agremiações datam dos anos 1920, e derivam de associações coletivas. “Elas vêm de uma tradição de organizações do século XIX. Eram grandes e pequenas sociedades onde as pessoas dançavam, faziam piquenique e até se casavam”, explica Natal, ressaltando que as escolas desde sempre usaram o samba e os desfiles como forma de atuação social. Nesse contexto surgem figuras como Cartola. Um dos maiores sambistas de todos os tempos, o compositor participou da fundação da Estação Primeira de Mangueira, uma das mais tradicionais agremiações cariocas. “Não dá para pensar Brasil sem pensar em Cartola, sem pensar no samba e sem pensar nos morros e favelas”, diz o estudioso.

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ESTILO - O músico Cláudio Camunguelo: elegância antirracismo (Arquivo Januário Garcia/Acervo IMS/.)

Além de Cartola, nomes como Aniceto do Império Serrano, Jovelina Pérola Negra e Paulo da Portela foram fundamentais para o desenvolvimento da cultura sambista, hoje mantida de pé por figuras como Martinho da Vila. A mostra também dá espaço merecido às mulheres que construíram o samba. Chamadas de “tias baianas”, elas migraram para o Rio após a abolição. Na cidade, organizavam saraus, eram articuladoras políticas e davam voz ao ritmo nas comunidades. Muito do material exposto no IMS vem do acervo dessas mulheres. “A casa da Tia Dodô da Portela é um museu a céu aberto dessa história”, conta Natal. São pessoas como ela que não deixam o samba morrer, assim como a rica cultura surgida em torno dele.

Publicado em VEJA de 27 de outubro de 2023, edição nº 2865

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