Morte de Chadwick Boseman reabre debate sobre o racismo em Hollywood
A despedida precoce do ator de Pantera Negra reacende a discussão sobre a antiga luta dos negros por representações dignas nos filmes
EM 2018, enquanto lutava secretamente contra um câncer de cólon, o ator Chadwick Boseman fez um discurso inspirador na Universidade Howard, renomada instituição em Washington majoritariamente frequentada por alunos negros. Ele contou um episódio instrutivo do começo de sua carreira. Após estrear no teatro, em Nova York, conseguiu um papel em uma novela na TV. O roteiro o deixou em crise: ele teria de interpretar o bandido de uma gangue. O estereótipo colado aos jovens de pele negra fez com que questionasse os produtores sobre o personagem: “Cadê o pai dele? E a mãe? Como ele chegou a essa situação? Ele tem algum talento?”. As perguntas causaram sua demissão. Mas a semente deixada ali germinou: o personagem foi ao ar reformulado, ainda que vivido por outro ator. Anos depois, já alçado à fama mundial como o super-herói de Pantera Negra, da Marvel, um Boseman sem arrependimentos comentou sua ousadia: “Fiquei com fama de difícil”.
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Ao defender com sabedoria seu posicionamento sobre como os negros devem ser representados pela ficção, o ator que morreu na sexta-feira 28, aos 43 anos, não só moldou o tipo de carreira que viria a ter — diversificada, mas coesa —, como também se tornou expoente de um movimento que há décadas pressiona Hollywood por mudanças. Mais de cinquenta anos antes de Boseman arrasar quarteirões com Pantera Negra, outro ator de comparável nobreza e carisma se tornou símbolo do que viria a ser um ponto de virada em Hollywood. Nos Estados Unidos dos anos 60, em plena luta da população negra por direitos civis, Sidney Poitier escolhia a dedo os papéis menos estereotipados disponíveis. O reconhecimento veio com Uma Voz nas Sombras (1963). A comédia dramática sobre um homem que ajuda um grupo de freiras a construir uma capela deu a ele o Oscar de melhor ator, prêmio então inédito para um artista negro. Poitier ainda estrelou o policial No Calor da Noite (1967), primeiro filme a levar o Oscar protagonizado por um negro — e tratando de tensões raciais de forma explícita. A façanha parecia promissora, já que duas décadas separavam as estatuetas de Poitier e da atriz Hattie McDaniel (1893-1952), a primeira pessoa de pele negra a levar a honraria pelo hoje acusado de racismo …E o Vento Levou (1939). Na época, apenas brancos podiam entrar na cerimônia. Ela se sentou ao fundo.
O sucesso de Poitier, porém, se mostraria uma exceção que comprovava a resiliência do preconceito. As oportunidades continuaram rarefeitas. Artistas negros criaram então o subgênero blaxploitation, em rentáveis produções de ação de cunho cômico nos anos 70. Cultuados, mas alternativos, esses filmes os encurralaram em uma franja da dramaturgia. O Oscar, termômetro da indústria, atesta a marginalização. Em 92 edições do prêmio, somente dezenove negros venceram nas categorias de atuação — sendo treze a partir dos anos 2000. A discrepância na proporção de indicados fez com que, em 2015, a hashtag #OscarsSoWhite (Oscar tão branco) tomasse as rede sociais, seguida de um boicote. A Academia devolveu a acusação aos estúdios. A queda de braço é complexa.
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Em resposta, jovens talentos negros, por trás ou diante das câmeras, têm buscado (e alcançado) cada vez mais relevância. O roteirista e diretor Jordan Peele chegou ao alto escalão de produtores após o acachapante Corra!. A cineasta Ava DuVernay fechou contrato de 100 milhões de dólares com a Warner Bros TV. Em 2017, Moonlight colocou no palco do Oscar o primeiro elenco totalmente negro. Em 2018, o estonteante Pantera Negra veio para coroar o movimento. A superprodução combinou a avançada tecnologia do país fictício Wakanda, localizado na África, com detalhes da milenar mitologia do continente, ressaltando a força intelectual dos africanos em um mundo imaginário livre do racismo. Quebrou-se também a falácia de que protagonistas negros não eram rentáveis: Pantera Negra fez 1,3 bilhão de dólares em bilheteria.
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A afinada atuação de Boseman é parte indiscutível desse sucesso. Os anos da fama de “difícil” fizeram dele um proeminente professor e ator de teatro, chegando ao cinema com músculos para carregar muitos outros “primeiros”. Boseman deu vida ao primeiro astro negro do beisebol e ao primeiro juiz negro da Suprema Corte americana. A precoce partida do ator é um baque — mas seu legado, impossível de ser apagado.
Publicado em VEJA de 9 de setembro de 2020, edição nº 2703
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