Milton Gonçalves, a liderança delicada
O ator morreu em 30 de maio, aos 88 anos, no Rio de Janeiro


Nos palcos, nas telas de cinema ou nas telinhas de TV, o mineiro Milton Gonçalves foi sempre um ator de sete instrumentos. Impunha a seus personagens candura e sinceridade, humor e altivez, tudo a um só tempo, e com uma voz rouca inigualável. Poucos intérpretes brasileiros souberam passar sentimentos tão genuínos apenas com o olhar e o sorriso, sem que precisasse de grandes gestos. Gonçalves começou a carreira no Teatro de Arena, em meados dos anos 1950 em Ratos e Homens, peça dirigida pelo estreante Augusto Boal a partir do texto do americano John Steinbeck. Ao seu lado estavam nomes como Gianfrancesco Guarnieri, Flávio Migliaccio, Oduvaldo Vianna Filho, José Serber e tantos outros profissionais quase imberbes que iniciavam a trajetória artística. “Estudavam história do teatro, impostação de voz, postura, filosofia e arte”, disse ele ao lembrar dos primórdios de sua trajetória. A educação formal, em um grupo que transformaria as artes cênicas no Brasil, serviria de estofo para o que ele faria depois — em mais de 100 filmes e pelo menos quarenta novelas. Quem há de esquecer do Zelão das Asas, de O Bem Amado, de 1973, ou do médico Percival, de Pecado Capital, de 1975? Mais recentemente, sua atuação como Pai José, na segunda versão da novela Sinhá Moça, de 2006, valeu ao artista uma indicação para o prêmio de melhor ator no Emmy Internacional. No cinema, marcou época como o Jiguê, de Macunaíma, de 1969, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, e como o transformista Madame Satã de A Rainha Diaba, de Antonio Carlos Fontoura, de 1974. Mas orgulhava-se mesmo era do severo líder sindicalista Braulio, de Eles Não Usam Black Tie, que levou ao teatro, com a direção de Guarnieri, e depois ao cinema, pelas mãos de Leon Hirszman. Conhecedor profundo das técnicas e humores da interpretação, foi também diretor.
Quieto e calmo, abriu as portas para os negros, a quem sempre coube os atávicos papéis de escravos ou funcionários a serviço dos brancos. Símbolo da afirmação de sua raça, exercia liderança delicada. Não por acaso, em um de seus últimos trabalhos fez um Papai Noel negro com dificuldades de aceitação. No Twitter, Lázaro Ramos escreveu: “Agradeço imensamente todos os caminhos que o senhor abriu para nós”. Milton Gonçalves morreu em 30 de maio, aos 88 anos, no Rio de Janeiro. Em 2020 tinha sofrido um AVC.
Publicado em VEJA de 8 de junho de 2022, edição nº 2792
























