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“Meu talento não depende de gênero”, diz cantora Ella, ex-Jotta A

De família evangélica, ela fez cirurgia de feminização e superou o preconceito na igreja

Por Kelly Miyashiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h52 - Publicado em 22 abr 2023, 08h00

Sempre amei cantar. Como José Antônio, aos 6 anos entrei no coral da igreja pentecostal onde eu também atuava como pregador-mirim nos cultos, lá na minha cidade natal, Guajará-Mirim, Rondônia. Meus pais, uma dona de casa e um administrador aposentado, acreditavam tanto na minha vocação musical que nos mudamos para Sorocaba, no interior de São Paulo, onde achavam que eu teria mais oportunidades. Aos 7, já estava gravando fitas demo em um estúdio amador para distribuir em igrejas evangélicas. Apesar de novo, naquela idade eu já gostava de me vestir como menina, me fantasiava com as roupas da minha mãe e da minha irmã. Na adolescência, adorava acompanhar o programa apresentado por Raul Gil e decidi me inscrever no show de calouros dele. Eu tinha só 12 anos quando entoei Hallelujah naquele palco pela primeira vez, sob o nome artístico Jotta A, chamando a atenção de gravadoras e produtores musicais. Um deles foi o canadense David Foster, que já havia trabalhado com nomes de grife como Michael Jackson, e que desejava me levar para os Estados Unidos. Meus pais tinham receio e, como meus responsáveis legais, não permitiram, então assinei contrato com uma gravadora de música gospel. Ainda penso em como poderia ter sido minha vida caso tivesse aceitado aquela chance — talvez não tivesse demorado tanto para eu me entender como a mulher transexual que sou. Recentemente, assumi minha verdadeira identidade, com direito a retificação oficial de meus documentos: Ella Viana de Holanda.

Minha família sempre foi alinhada ao Evangelho, e frequentávamos a igreja assiduamente. Porém, quando jovem, comecei a ter contato com pessoas diversas, como gays e lésbicas, e fui abrindo minha cabeça para fora da religião, percebendo aos poucos que eu também era diferente. Na escola, eu podia ser quem eu quisesse. Mas em casa não. Tinha medo do que meus pais e meu pastor iriam pensar. Comecei a namorar garotos — tudo escondido, é claro. O gospel me levou a lugares em que jamais imaginei pisar, muito além das apresentações em programas de televisão. Além de cantar, eu compunha minhas canções. Concorri ao Grammy Latino, mas, infelizmente, não venci. Cheguei a fazer quinze shows por mês e fui morar na Colômbia, onde lancei dois álbuns em espanhol. Conquistei discos de ouro e platina. A rotina pesada de apresentações me levou a experimentar álcool e drogas, escandalizando meu meio musical pela primeira vez.

Quando a pandemia começou, tive de paralisar minhas turnês e, como tantas pessoas, reavaliei minha vida naquele período de incertezas. No auge da minha carreira, voltei ao Brasil e decidi largar tudo, apesar do medo do preconceito e da religião, que trata a homossexualidade como pecado. Abandonei a igreja e me assumi gay em 2021, deixando meu público, fervorosamente evangélico, assustado. Mas foi justamente fora dessa comunidade que me descobri completamente, revelando minha transexualidade no ano seguinte. A transição me fez perder amigos, ser atacada na internet diariamente, mas tenho a sorte de ter minha família, mesmo surpresa com tantas mudanças, ao meu lado. Minha irmã me aceitou instantaneamente. Com o tempo, meus pais e irmão também conseguiram se acostumar com meu verdadeiro eu. Acabo de lançar um álbum de música pop e me recupero de cirurgias de feminização facial e corporal, procedimentos como reestruturação óssea e colocação de próteses de mama. Hoje, eu não me considero de nenhuma religião. Tenho fé em Deus e estou conhecendo outras crenças, mas meu sonho agora é ver minha voz ecoando por todos os lugares com a minha música. Quero provar que meu talento independe de gênero.

Ella em depoimento dado a Kelly Miyashiro

Publicado em VEJA de 26 de abril de 2023, edição nº 2838

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