Margaret Atwood: a profetisa do presente
Com 'Os Testamentos', sequência de 'O Conto da Aia', a escritora confirma seu taco certeiro para criar distopias que vocalizam fantasmas muito atuais
Quando estudava na Universidade de Toronto, no fim dos anos 50, a canadense Margaret Atwood ouviu de um professor que a questão mais relevante a ser feita sobre uma obra literária era a seguinte: ela está viva ou morta? O teste para saber se um livro ainda pulsava — e se estaria, portanto, do lado dos vivos — era procurar seus frutos na interação com o leitor, fosse qual fosse a distância temporal entre um e outro. Em 1985, quando Margaret lançou O Conto da Aia, o título pendia mais para o grupo das obras mortas do que o contrário. Até que acontecimentos da última década deram novo e assustador fôlego à trama.
A celebrada obra hoje ostenta 8 milhões de cópias vendidas no mundo, 145 000 das quais no Brasil nos últimos dois anos — e deu origem à bem-sucedida série The Handmaid’s Tale, produzida pelo serviço de streaming Hulu e transmitida no Brasil pelo canal a cabo Paramount e pela plataforma Globoplay. Nela, o Congresso americano é fechado por um golpe de fundamentalistas cristãos, que transformam o país na República de Gilead — onde a homossexualidade é punida com morte e crianças são retiradas das mães e entregues a famílias da elite. Proibidas de ler e emitir opiniões, as mulheres são reduzidas ao papel de donas de casa ou obrigadas a participar de rituais religiosos de fertilidade — estupro, para bom entendedor. Essas últimas, as chamadas aias, são meras parideiras consideradas inadequadas para ser esposas dos figurões: aquelas que fizeram aborto ou foram vítimas de estupro devem se declarar culpadas pelo crime; mulheres divorciadas são pecadoras indignas.
Mais de trinta anos após seu lançamento, The Handmaid’s Tale fez de Margaret uma profetisa capaz de projetar no futuro os fantasmas do presente: a recente escalada de populistas que atacam as liberdades e a democracia, apoiados no radicalismo religioso, tornou a distopia do livro tristemente verossímil. Por essa razão, a escritora — que faz 80 anos no dia 18 — reviu sua recusa inicial em escrever uma sequência de O Conto da Aia. Faz sentido: a obra está mais viva que nunca. “O tempo passou, e não nos afastamos de Gilead. Caminhamos em direção àquilo, especialmente nos Estados Unidos.” A frase foi dita por Margaret num evento em Londres, onde lançou a aguardada continuação de sua obra: Os Testamentos, que chega ao Brasil no sábado 9, com a notável tiragem de 100 000 exemplares.
No livro, que se passa quinze anos depois do fim de O Conto da Aia, Gilead ainda existe, mas mostra sinais de desgaste em suas relações econômicas e diplomáticas. Um muro entre a república ditatorial e o Canadá foi construído — qualquer semelhança com México e Estados Unidos não é mera coincidência. Três narradoras escrevem, como diz o título, testemunhos do que viveram: a poderosa e vilanesca Tia Lydia, conhecida do livro anterior, é a voz mais forte, seguida por uma adolescente que cresceu em Gilead e outra criada no Canadá. As jovens expõem os contrastes de crianças educadas em diferentes sociedades: uma é livre para ser quem quiser, a outra luta para fugir de um casamento arranjado ao completar 13 anos. Por meio das histórias de ambas, a autora toca em nervos expostos de hoje, como o drama dos refugiados, o assédio sexual e a pedofilia. Margaret fala de um futuro indeterminado no tempo, com ecos do presente e do passado. “Tudo o que escrevo tem precedente histórico”, afirma.
Antes mesmo de ser lançado, Os Testamentos já era finalista do prestigioso Booker Prize — honraria que Margaret faturou em outubro. Assim, ela se confirma como um caso raro de escritora que combina alto prestígio literário e inegável apelo pop. Desde a estreia da série baseada em O Conto da Aia, vencedora do Emmy e do Globo de Ouro, o livro original cavou uma trincheira na lista de Mais Vendidos de VEJA: já está há 94 semanas entre os primeiros no ranking. O alavancar das vendas não foi impulsionado só pela TV: teve tudo a ver com a ascensão de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos. Com seu jeito controverso de tratar as mulheres e sua cruzada contra o aborto, Trump entrou na mira das feministas. Em seus protestos, as ativistas agora portam cartazes com referências à autora e sua obra. Surgiu até um trocadilho com seu slogan de campanha: “Make America great again” converteu-se em “Make Margaret Atwood fiction again” (Faça Margaret Atwood virar ficção de novo). Tornou-se comum, ainda, ver manifestantes fantasiadas de aias. O figurino popularizado por Elisabeth Moss, que faz a protagonista June na série de TV, transformou-se em elemento pop de resistência — como aconteceu com as máscaras do vigilante antifascista de V de Vingança. “Há personagens que escapam das páginas, como Dom Quixote, e se tornam metáforas”, diz Margaret.
O forte da escritora é mesmo sua habilidade monumental em criar personagens complexos. As histórias desenhadas pela canadense mostram pessoas comuns em eras de extremos — seja no passado, quando os direitos das mulheres eram escassos, seja num futuro em que a democracia e o meio ambiente foram desmantelados pelos interesses de forças maiores. A partir daí, Margaret observa como os protagonistas — em sua maioria, claro, mulheres — reagem. São pessoas de carne e osso, sem bravura natural, que destoam de certa literatura feminista por não abusar de frases feitas, nem empunhar bandeiras. As mulheres de Margaret demonstram seu valor pelas atitudes diante da adversidade. Elas se apegam a éticas próprias e à experiência com deslizes já cometidos para decidir o que é certo ou errado. Em outro livro que é uma pequena pérola, Vulgo Grace — que deu origem à série Alias Grace, da Netflix —, uma jovem do século XIX é acusada de assassinato e condenada à prisão perpétua. Interpretada com mestria por Sarah Gadon na série, a personagem é ambivalente: ao mesmo tempo em que sofre maus-tratos de uma sociedade injusta, ela se vale da condição de bela mulher para se livrar do pior.
A obra de Margaret é atualíssima também por certa característica útil: tudo o que ela escreve parece talhado para virar série. Há mais duas produções no forno. A trilogia MaddAddão, iniciada em 2003 com o livro Oryx e Crake, será adaptada pela Paramount TV. Seu mote tem potencial para ser a próxima distopia da hora: um mundo desolado por um apocalipse ambiental. Os Testamentos, previsivelmente, também ensejará um spin-off de O Conto da Aia, produzido pela mesma Hulu. Enquanto vê seus escritos virar fenômenos do entretenimento, a autora se diverte fazendo pontas na TV. Em O Conto da Aia, ela chocou ao aparecer na pele de uma tutora cruel que dava um tapão na cara da sofrida protagonista. Está aí uma escritora que leva sua obra muito a sério.
Publicado em VEJA de 6 de novembro de 2019, edição nº 2659