O escritor Jorge Caldeira é conhecido por seus livros sobre história econômica e política brasileira, voltados para o Brasil Colônia, o Império e a Primeira República. Por isso, sua nova obra, escrita em parceria com Julia Marisa Sekula e Luana Schabib, pode parecer um ponto fora da curva. Em Brasil: Paraíso Restaurável, o tema é a economia verde e, mais especificamente, a transição de uma matriz energética poluidora para uma matriz renovável de energia solar e eólica.
Fora os Estados Unidos, os grandes governos mundiais — em especial a China e a Alemanha — têm feito sua parte. Sim, pode parecer surpreendente dada a imagem de poluidora da China, mas há uma década ela vem investindo em fontes renováveis de energia e já é, desde 2014, líder global em energia gerada por usinas solares. Até o mercado financeiro tem comparecido, com fundos que olham para os impactos sociais e ambientais de seus investimentos.
Nesse cenário, os autores colocam o Brasil como um país cuja matriz elétrica é consideravelmente renovável (graças às hidrelétricas e ao baixo uso de carvão mineral) mas que ainda não tomou uma decisão consciente rumo à sustentabilidade.
A opção pela energia verde reconfigura toda a economia. Algumas das razões são óbvias: as reservas de petróleo perdem valor. Outras, surpreendentes: Índia e Cazaquistão descobriram que seus imensos desertos são ideais para a produção de energia solar. Há então uma reversão de expectativas: o deserto, sempre tido por vastidão de terra inútil, torna-se ativo valioso. O Brasil tem tudo para encabeçar esse movimento mundial: com sua vasta biodiversidade, incidência solar e ampla geografia, falta ao país, apenas, assumir de fato a liderança.
Se o livro se restringisse a isso, seria tão somente um apanhado jornalístico sobre o investimento em fontes de energia renováveis e não poluidoras, sem grandes novidades. Mas há uma ambição maior. Para os autores, a opção nacional pela sustentabilidade vai além de diretrizes de governo e incentivos econômicos: tem de estar arraigada em valores e crenças de sua própria cultura e história. É preciso que cada país busque em si as fontes imaginativas para criar uma utopia social que leve em conta as demandas ambientais e a relação harmônica do homem com a natureza: é isso que eles chamam de “paraíso restaurável”. No caso da Alemanha, a motivação teria vindo do romantismo alemão; nos países asiáticos, do taoísmo e do budismo. No caso americano, a utopia tem trabalhado contra: a mitologia do individualismo e do automóvel das corridas de Nascar (celebradas por Donald Trump) empurram o país na direção contrária.
Por aqui, práticas sustentáveis e predatórias convivem lado a lado. A natureza é parte da autoimagem do Brasil. Mas, por ser vista como infinita, jamais foi alçada ao patamar de valor nacional. E é esse o ponto que conecta o livro ao restante da obra de Caldeira. Seu tema sempre foi a identidade nacional. Empreendedores desconhecidos no sertão brasileiro durante a colonização, câmaras municipais operando ininterruptamente desde o século XVI, sociabilidade calcada em hábitos tupis-guaranis: assuntos que Caldeira ajudou a desvelar por mudarem a imagem que o brasileiro tem da própria nação.
O Brasil não era (e não é) o país de uma pequena elite oficial que olha para o exterior e comanda uma massa inerte de miseráveis. A essa visão antiquada, partilhada por conservadores e marxistas, Caldeira antepõe a de um Brasil dinâmico, em que o grosso de sua população tem iniciativa empreendedora e vocação democrática — a essa identidade soma-se o amor pela natureza pujante, que faz parte dos mitos fundadores do país.
O pendor histórico do autor toma a dianteira em uma linha do tempo informativa das diferentes fontes de energia usadas no Brasil. Aqui o carvão mineral nunca teve muito espaço: o crescimento do país (inclusive seu primeiro surto industrial) foi energizado primariamente pela queima de lenha e, num segundo momento, usinas hidrelétricas. Mais recentemente, etanol de cana (uma fonte sustentável, porque o carbono lançado ao ar é a fonte dele quando a cana-de-açúcar cresce). Mesmo sem grandes preocupações ambientais, a dotação natural levou o país por um caminho sustentável no que diz respeito às emissões. Mas tudo pode ser perdido se o valor da natureza for desprezado. Ou o Brasil se reencontra consigo mesmo, fazendo com que sua realidade vivida invada a narrativa oficial e passe a comandá-la, ou ficará para trás na história. O exemplo positivo a ser reproduzido é o pró-álcool, programa que não tinha nenhuma finalidade ecológica mas que, ao dar diretrizes e incentivos para o desenvolvimento econômico, apontou na direção certa.
A proposta inovadora do livro empaca na construção imaginativa do tal “paraíso restaurável”. A busca cristã e tupi pelo Paraíso ou Terra sem Mal, o entendimento indígena do valor da natureza e uma levíssima pincelada de religiosidade africana são apresentados apenas como vislumbres de elementos que podem criar uma utopia nacional. O desafio do paraíso renovável brasileiro foi lançado e não resolvido. A expectativa é que lideranças conscientes transformem o sonho em projeto real.
Publicado em VEJA de 25 de novembro de 2020, edição nº 2714