Em 1968, o canal americano NBC levou ao ar uma cena inédita: pela primeira vez os Estados Unidos viram, pela televisão, uma mulher branca tocar um homem negro. Petula Clark, à época uma cantora inglesa dona de uma carreira sem grandes feitos, entoava um dueto com o famoso cantor negro de origem caribenha Harry Belafonte. Na cena, os dois apareciam vestidos de branco, Petula ao fundo e Belafonte à frente. Em dado momento, haviam ensaiado, Petula deveria caminhar até Belafonte. Eles cantariam lado a lado. No ato da filmagem, no entanto, o estúdio todo se comoveu com a canção e as performances. Muitos, segundo relatos dos presentes, choraram. O clima era de catarse. Petula caminhou até Belafonte conforme o previsto. Mas, ao chegar ao lado do colega, a cantora se encostou com leveza no braço dele.
Foram alguns segundos, não mais. Um toque fraternal que hoje passaria absolutamente despercebido aos olhos do grande público. Todavia, naquele momento, diante dos Estados Unidos convulsionados com a emergência dos movimentos sociais que lutavam por direitos civis e liberdades individuais, a brevíssima cena tornou-se um escândalo.
A emissora hesitou em levar o programa ao ar, e uma longa discussão que envolveu os diretores da atração e seus anunciantes foi descrita por Belafonte como o caso de racismo mais tenebroso que enfrentou em sua trajetória como artista. O resultado, aqueles poucos frames que ficaram conhecidos na história da TV americana como “o toque”, marcou a retina das massas e permitiu que o debate público sobre as relações de raça, gênero e classe alcançasse um novo patamar. Poucos frames na televisão aberta determinaram importantes passos adiante rumo à igualdade.
Algo semelhante se passou no Brasil recentemente.
Ao participar de um programa beneficente apresentado por Silvio Santos em sua emissora, Claudia Leitte foi a Petula da vez. O dono do SBT fez uma série de comentários absurdos a respeito da roupa da cantora, de seu corpo e do que ele sentia ao lado dela. Deixou-a visivelmente constrangida e protagonizou uma cena que é velha conhecida de muitas de nós. Nossas atitudes são reiteradamente usadas como justificativa para abordagens que devem ser chamadas pelo nome certo: assédio.
Claudia Leitte tentou deixar claro seu desconforto. Na plateia, a família de Silvio Santos estampava sorrisos amarelos. Tudo em perfeita consonância com o roteiro da cultura do estupro que muitos ainda insistem ser “normal”. Isso não é normal. A culpa não é da vítima. A idade do agressor não é desculpa. E nada disso é mimimi, vitimismo. Isso se chama liberdade. Nós temos alguma. Queremos muito mais.
Claudia, involuntariamente mas com igual grandeza, recriou o momento do toque de Petula. A cantora ofereceu às massas alguns instantes capazes de fomentar ideias a respeito do “novo normal” que estamos construindo. Que a sua força para desafiar o machismo ao vivo nas telas do país todo — e novamente horas depois nas redes sociais — inspire muitos a ser melhores. E muitas a ser tudo o que quiserem ser.
Publicado em VEJA de 21 de novembro de 2018, edição nº 2609