Jessye Norman: a diva negra do canto lírico
A soprano morreu na segunda-feira 30, aos 74 anos, de choque séptico decorrente de uma lesão na medula espinhal sofrida em 2015, em Nova York

No universo da ópera, a soprano Jessye Norman pairava alguns patamares acima de suas similares contemporâneas. A voz potente, calorosa, carregada de intensidade dramática, não só se destacava sobre a sonoridade da orquestra: era capaz de ressoar para sempre na memória de quem a escutasse nas salas de concerto. Quem duvida pode tirar a prova em dois momentos disponíveis no YouTube: a morte de Isolda, cena da célebre ópera de Richard Wagner, regida por Herbert von Karajan, à frente da Filarmônica de Viena, em 1989; e a versão do hino religioso Amazing Grace, durante homenagem no Kennedy Center ao ator Sidney Poitier, em 1995. Duas performances emocionantes e irretocáveis num repertório abrangente que ia das canções de Richard Strauss aos spirituals americanos, de óperas às composições populares de George Gershwin, Duke Ellington e Michel Legrand.
Jessye Mae Norman nasceu em Augusta, no Estado da Geórgia, em 1945 — período em que as tensões raciais recrudesciam no sul dos Estados Unidos. Vinda de uma família negra de classe média, descobriu a ópera na infância, ao escutar récitas transmitidas pelo rádio. “As histórias contadas nas óperas não eram diferentes das que eu conhecia. Um rapaz encontra uma garota, apaixona-se por ela, por alguma razão eles não podem ficar juntos e tudo se encaminha para um final triste”, dizia. Jessye se formou em música pela Universidade Howard, em Washington, e emergiu profissionalmente na Europa. Em 1969, estreou no papel de Elisabeth em Tannhäuser, de Wagner. O sucesso lhe abriu as portas das principais casas de ópera do mundo, entre elas o Teatro alla Scala, de Milão, e a Royal Opera House, de Londres. Em 1983, Jessye faria sua estreia na Metropolitan Opera de Nova York. Com o tempo, passou a preservar a voz, trocando a opulência das óperas pela sobriedade dos recitais. A recusa de papéis e os cancelamentos de última hora renderam-lhe o epíteto de “diva”.
Para além da voz primorosa, tinha outras qualidades enobrecedoras: engajada em causas sociais, criou em 2003 uma escola de artes para crianças pobres em sua Augusta de origem. Pela generosidade, daria nome a uma rua — a inauguração oficial seria em breve, com a presença da cantora. Jessye morreu na segunda-feira 30, aos 74 anos, de choque séptico decorrente de uma lesão na medula espinhal sofrida em 2015, em Nova York.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2019, edição nº 2655