Frank Dikötter analisa solidão dos tiranos em ‘Como Ser um Ditador’
Em livro, o holandês examina o culto à personalidade de oito facínoras
Em 21 de dezembro de 1989, um mês após a queda do Muro de Berlim, o déspota romeno Nicolae Ceausescu fez um discurso em Bucareste. Queria reafirmar a força do regime diante da debacle comunista que varria o Leste Europeu. As vaias — as primeiras em toda a sua “carreira” de mais de vinte anos como ditador — começaram logo após o início de sua fala. Assustado, ele levantou a mão para pedir silêncio e sua mulher, Elena Petrescu, ordenou que a multidão parasse. A repressão policial transformou o evento em tumulto. Quatro dias mais tarde, no Natal, ambos foram fuzilados por diversos crimes, incluindo o genocídio de mais de 60 000 opositores.
Cercado de assessores subservientes e isolado em gabinetes, Ceausescu perdera o contato com a realidade; não soube entender as mudanças diante de seus olhos. O isolamento também abateu outros tiranos, mostra o livro Como Ser um Ditador, do historiador holandês Frank Dikötter. A obra aponta características comuns de oito facínoras — além do já citado Ceausescu, Benito Mussolini, Adolf Hitler, Josef Stalin, Mao Tsé-tung, Kim Il-Sung, François Duvalier e Mengistu Haile Mariam. O atributo mais ressaltado é o intenso culto à personalidade. Mas o que assoma como maior qualidade da obra é seu estudo de uma particularidade intrigante e shakespeariana entre os caudilhos retratados: a solidão do poder inerente à sua condição. Figuras poderosas e temidas, a maioria deles não tinha assessores, nem amigos; só bajuladores e interesseiros dissimulados. Esse isolamento — tão bem retratado na peça Ricardo III, de Shakespeare — é um dos motivos que levam ditadores à ruína. Na tragédia do bardo inglês, o Duque de Gloucester mata quem está à sua frente na sucessão do trono. Torna-se rei, mas acaba solitário e louco.
Dikötter afirma que a maior ameaça aos ditadores não é o povo ou seu entourage, mas eles mesmos. Desconfiados de tudo e de todos — Stalin perseguiu até familiares — os tiranos tornam-se figuras erráticas, acuadas e propensas a erros de cálculo. “Eles tomam decisões drásticas sem a devida reflexão. Habitam um sistema fechado, descolado da realidade”, disse o autor a VEJA (leia abaixo). Para ele, a invasão da Ucrânia por Vladmir Putin é um exemplo atual disso. Um erro de um autocrata (um degrau abaixo do ditador) cercado por pessoas que só falam o que ele quer ouvir.
Stálin: Nova biografia de um ditador
As histórias dos diferentes déspotas ensinam que não é fácil ser um ditador. Como um especialista em coaching, eles tinham soft skills (aptidão para liderança, inteligência emocional, boa capacidade de comunicação etc.) bem desenvolvidas. Mas, quando a lábia e o carisma não funcionavam, lançavam mão do método mais eficaz na arte de convencimento, a força. O uso ostensivo da violência é um dos ingredientes para fomentar o clima de medo constante que os sustenta. No auge da repressão stalinista, entre 1937 e 1938, o regime executou 1 000 pessoas por dia, em média. O haitiano Duvalier criou uma milícia própria (a temida Tonton Macoute) de assassinos, achacadores e estupradores. O etíope Mengistu ordenava que a TV estatal transmitisse torturas e execuções de seus adversários.
Morando e lecionando em Hong Kong, Dikötter é especialista na história política da China. Logo, o capítulo sobre Mao é o mais robusto e contextualiza como o ditador chinês foi um dos déspotas mais bem-sucedidos da história. Apesar de seus muitos erros — incluindo 45 milhões de mortos de fome entre 1958 e 1962, vítimas de suas políticas desumanas —, ele não foi deposto nem assassinado; morreu de causas naturais. E ainda foi hábil para envolver seus partidários em seus crimes. “Ao se tornarem coautores, eles e seus sucessores se converteram em guardiões da imagem de Mao”, escreve o autor. Para não acabar sós e abandonados, os tiranos precisam de cúmplices diligentes.
“O medo é a arma do ditador”
Frank Dikötter falou a VEJA sobre a lógica dos líderes autoritários.
O livro mostra que ditadores são pessoas desconfiadas de traições. Por que tanto temor? Quando um ditador toma o poder com um golpe, ele terá sempre medo de que alguém faça o mesmo com ele. Não há saída além do clima constante de desconfiança. Todos os ditadores gastam uma quantidade extraordinária de tempo controlando as pessoas ao seu redor. Eles se preocupam sobre quem conversou com quem, se há panelinhas ou alianças à sua revelia.
Outra característica comum entre os tiranos é a fabricação sem fim de inimigos. Qual a lógica disso? O medo que eles impõem à população é uma arma de governança. Se não tiverem inimigos e não incutirem medo, as pessoas não os levarão a sério.
No Brasil há manifestações pedindo golpe de Estado e ditadura. O que o senhor diria a essas pessoas? Essa tentação foi muito atraente ao longo do século XX para um grande número de pessoas, mas basta ver o que aconteceu na Alemanha de Hitler ou no empobrecido Haiti sob Duvalier para saber as consequências. Hoje, as pessoas que realmente querem um ditador tendem a ser minoria. Se a ditadura emergir, ironicamente as pessoas que clamaram por ela se tornarão suas vítimas. As ditaduras devoram seus filhos.
O que pensa sobre a famosa frase de Churchill: “Democracia é a pior forma de governo; exceto por todas as outras”? Churchill acertou em cheio. A democracia é uma bagunça por natureza, mas substitua essa bagunça por uma ditadura. Será muito pior.
Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805
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