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Fernanda Montenegro: “Cultura vive momento de destruição bestial”

No dia em que é eleita para a Academia Brasileira de Letras, a atriz reflete sobre a nomeação, a carreira e o atual cenário político do país

Por Sofia Cerqueira, Marina Lang Atualizado em 5 nov 2021, 17h17 - Publicado em 4 nov 2021, 13h21

Declarada imortal pela Academia Brasileira de Letras (ABL) na tarde desta quinta-feira, 4, Fernanda Montenegro, 92 anos, dos quais 76 dedicados ao ofício de interpretar, sempre fez parte do universo da literatura. De personagens shakespearianos à mulher simplória que encantou os jurados do Oscar em Central do Brasil, a atriz é uma leitora voraz e uma trabalhadora incessante: “A arte do ator é uma obsessão vital”. Com um livro de memórias publicado há dois anos – condição sine qua non para garantir uma vaga no templo de Machado de Assis –, Fernanda agradeceu pela reverência de seus novos confrades ao aceitarem seu nome e diz que a academia é um espaço de resistência cultural.

Com o contrato recém-renovado com a TV Globo, ela comenta as dispensas que a emissora vem fazendo, de machismo no trabalho, de envelhecimento e sacramenta que jamais interpretaria personagens que defendessem ideias fascistas, homofóbicas e racistas. De posicionamento ideológico firme e crítica contumaz do governo, avalia que o atual momento é mais trágico do que a Ditadura Militar “porque aconteceu através do voto do cidadão”. E, entre outras coisas, diz o que falaria ao presidente Jair Bolsonaro caso ficasse frente a frente com ele: “Espero que o senhor se recupere logo de mais essa sua crise psíquica e volte feliz para sua família”. O grande nome da dramaturgia nacional concedeu entrevista a VEJA, por escrito, em meio aos preparativos para sua nomeação como titular da cadeira número 17 da ABL.

A senhora concorreu a uma cadeira da ABL na condição de vencedora, já que ninguém se candidatou a mesma vaga. Foi uma homenagem, se sentiu honrada? Ou preferiria participar de uma disputa convencional? A disputa da ABL se apresentou, diria, não convencional, mas, tradicional. Aceitei me candidatar dentro do ritual da casa. Com concorrentes ou sem concorrentes, a ABL me aceitou. Estou feliz.

O que a motivou a disputar o título de imortal? A ABL é um referencial cultural de 125 anos. Abrigou e abriga representantes que honram a diversidade da nossa criatividade em várias áreas. Inclusive honram também personalidades não literárias, segundo informações, como consta nos estatutos. Vejo a academia como um espaço de resistência cultural. A cultura das artes vive um momento de desmonte, de desconexão, de destruição bestial. O atual comando político nem sabe o que é sujeito, verbo e predicado. Diante desta ignorância absoluta, que vem de um cérebro limítrofe, viva a nossa Academia Brasileira de Letras. Reconheço e agradeço o avanço cultural e humanista ao aceitarem, entre seus membros, uma atriz – profissão, por incrível que pareça, ainda alternativa. Muitas vezes tida preconceituosamente como marginal.

Embora o seu nome tenha sido celebrado desde o início, também gerou controvérsias. Os mais conservadores bradaram que a senhora não é escritora. Isso a incomodou? Não houve incômodo algum da minha parte. Eu me apresentei e me receberam.

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A primeira mulher a entrar na ABL foi Rachel de Queiroz em 1977 e até hoje há uma grande disparidade de gênero, com 5 mulheres entre os 40 integrantes. A ABL é machista? Está entrando mais uma mulher na ABL. É ter paciência e avançar. Eu venho de uma área profissional, existencial, onde só após séculos, séculos e séculos a mulher conseguiu entrar em cena. E daí, no jogo cênico, sempre vence o melhor. Seja de que sexo for. Existe no palco, existirá na vida.

Já foi vítima de machismo no ambiente de trabalho? Os tempos de hoje são outros ou o machismo persiste entranhado na sociedade? Ainda há machismo em todos os ambientes. Imagina o de trabalho! Mas, a busca, a luta pela presença igualitária da mulher nesta nossa vida não tem volta. Temos que nos propor. E quanto mais nós nos propusermos, mais espaço teremos. Todas as mulheres acadêmicas foram e são personalidades atuantes, referenciais – de Rachel de Queiroz, Zélia Gattai, Diná Silveira de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Cleonice Berardinelli, Ana Maria Machado, Rosiska Darcy de Oliveira a Nélida Piñon.

Depois de 22 anos de ter concorrido ao Oscar de melhor atriz, o resultado ainda provoca debates. Recentemente, Glenn Close falou que a senhora merecia o prêmio que foi para Gwyneth Paltrow. Concorda? Gostaria de ter a estatueta? Prêmios, às vezes, vêm. Às vezes, não. O momento daquele Oscar foi inesperado. E daí? O filme de Walter Salles continua sendo um “não Oscar” maravilhoso. A vida continuou. A vida continua.

A senhora pertence a um seletíssimo grupo de atores veteranos que tiveram seus contratos com a TV Globo renovados este ano. Como vê as recentes dispensas de pratas da casa? Alguns são dispensados e outros se auto dispensam. A dramaturgia eletrônica está se ampliando vorazmente. A era do botão se institucionalizou. Você vê o que quiser, no lugar que quiser, na hora que calhar. Há uma profunda mudança em todo esse nosso tempo.

A senhora protagonizou algumas das cenas mais emblemáticas da TV, como o primeiro beijo lésbico, em 2015, na novela Babilônia, ao lado de Nathália Timberg. Acha que televisão demorou a dar voz à diversidade? Esse beijo, para surpresa geral, aconteceu logo no primeiro capítulo entre duas atrizes, na época com a idade de 86 anos. Nathália e eu nos beijamos suavemente, delicadamente, na boca. Por que não? Na história estávamos casadas havia 40 anos. O beijo foi um escândalo. Hoje não haveria aquela repulsa a esse carinho. Caminhamos e a caminhada foi bastante ágil. Destaco que todo o ganho libertário na dramaturgia televisiva se deve a Gilberto Braga. A quem reverencio.

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Acha que a sociedade evoluiu nesse assunto de lá para cá? Estamos evoluindo sim. Não há volta.

Durante 56 anos, a senhora foi casada com o ator Fernando Torres (1928-2008). Após sua partida, não teve mais nenhum relacionamento? Não. Ele e eu ainda estamos juntos.

Tem algum papel que jamais faria? Por quê? Jamais defenderia ou faria personagens fascistas, homofóbicos, racistas dentro de regências, encenações que defendessem estas temáticas.

O que a senhora diria para um novato na carreira? Desista. Se essa desistência levar você a um hospício, a uma crise existencial mortal, sem volta, então enfrente a sua vocação. A arte do ator é uma obsessão vital.

A carreira de artista mudou muito? As redes sociais influenciaram? Acha que isso destruiu a essência da profissão? A carreira se ampliou diante dos meios eletrônicos. São meios contemporâneos que cada vez mais vão se ampliar e se aperfeiçoar. Mas ao dar conta de um jogo dramático, a raiz do teatro estará sempre presente. Chaplin, diante de uma câmera, jamais saiu do palco. O cinema de Glauber Rocha também é um exemplo. Essa influência permanece no jogo dos nossos jovens atores e atrizes em qualquer espaço onde eles se apresentem. Dou como exemplo o Porta dos Fundos.

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Acaba tendo muito famoso por aí que é melhor de marketing do que de palco? O “muito famoso por aí” se só tiver fôlego para a área do marketing, já tem que agradecer a Deus. Começa e acaba aí.

Nos últimos três anos, a senhora passou a ter uma página no Instagram. Lida bem com a tecnologia e as mídias sociais? Tecnicamente não. Eu tenho quem cuide.

A senhora já usou o esse espaço digital para sair em defesa da classe artística, quando postou um texto que dizia “sem a cultura das artes, somos um país sem caráter”. Tem algo aí que se perdeu para sempre? Ou tudo pode ser recuperado em outro governo? Nessa minha idade vi desesperadas crises chegarem e desaparecerem. O período do Collor foi trágico. Lembra? Aí apareceu o Itamar Franco, o simplório Itamar Franco, e ele nos salvou. Esses malditos movimentos destrutivos sempre querem estrangular a cultura das artes. Não percebem que a primeira apunhalada já é neles mesmos. Os intestinos nunca voltam a funcionar com dignidade. Sem as tripas funcionando o coração para e uma nova era esperançosa, renascentista, chega.

O país vive um evidente esvaziamento de mecanismos de incentivo as artes, como a Lei Rouanet. É o pior momento para os artistas desde o Regime Militar? Há um embrutecimento político. Será que os governos que antecederam este atual horror, embora eles mais humanizados, cumpriram realmente o prometido? A reeleição presidencial deveria ser revista.

Chegou a ser perseguida naquela época? Claro. Naqueles 21 anos que durou aquele regime de exceção, toda expressão artística foi duramente perseguida, mas, milagrosamente, gritávamos, contestávamos, criávamos. Tratava-se de uma ditadura militar. Uma violenta ditadura militar. O atual momento é mais trágico porque aconteceu através do voto do cidadão.

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Caso tivesse a chance de ficar frente a frente com Bolsonaro, o que falaria? Capitão Bolsonaro, vim visitá-lo com o meu pensamento pleno de humanismo. Espero que o senhor se recupere logo de mais essa sua crise psíquica e volte feliz para sua família.

Por que recusou ser ministra da Cultura dos governos Sarney e Itamar Franco? Não tinha e não tenho capacidade para tanto.

A senhora abriu portas para outras mulheres se estabelecerem na carreira. Sendo pioneira, se considera feminista? Repito sem parar: a minha profissão é libertária. É uma arte carnificada. Tem como base a condição humana na sua verticalidade: um ser vivo diante de outro ser vivo. Não me sinto ativista e sim atuante. Não sou pioneira. Este lugar pertence à grande Dulcina de Moraes.

Por quê? A ela devemos a luta, imensa luta, até alcançar, no seu tempo, um ganho não só artístico, mas, milagrosamente, uma aceitação profissional, social. Tempos de total preconceito à nossa atividade. Como exemplo do “milagre Dulcina”, dou o fim da Carteira de Segurança Pública. Esse documento exigido pelo setor da Polícia Federal deveria, obrigatoriamente, estar sempre nas mãos dos “Fora da Lei”: traficantes, proxenetas, prostitutos, prostitutas, gigolôs, malandros, ladrões e – imagina – atores e atrizes. Foram duras batalhas de Dulcina junto à Getúlio Vargas. E como educadora, devemos a ela a Fundação Brasileira de Teatro, de presença poderosa na formação dessa nossa profissão. Hoje essa fundação ainda existe em Brasília.

No campo pessoal, a pandemia foi o período mais difícil que a senhora já experimentou? Sim. Esta situação que estamos vivendo é impensável. Nesta pandemia são mais de 600 000 mortos no Brasil. E diante de um governo alienado, bruto.

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Qual a parte mais difícil de envelhecer? A consciência do desplugamento. Até agora, ela está me vindo lentamente.

Já fez plásticas ou se rendeu a artifícios como o botox? Nos meus antigos tempos, tentei uma coisa ou outra. No momento, seja o que Deus quiser. Há ganhos, por incrível que pareça: não pinto mais o cabelo.

Teme a morte? O meu maior medo é não levar comigo, quando eu partir, a minha memória.

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