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Exposição incômoda em Paris revela o horror na relação entre nazismo e arte

Mostra no Museu Picasso denuncia o absurdo da chamada 'arte degenerada' — uma armadilha que não pode voltar

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 16 mar 2025, 08h00

E se um dos horrores do século XX tiver começado de uma rejeição? Antes de entrar na política, Adolf Hitler pintou naturezas, pálidas e sem graça, pastiches do neoimpressionismo. Ele foi duas vezes rejeitado para uma cadeira na Academia de Belas Artes de Viena. Em 1935, já como premiê da Alemanha, resumiria a uma multidão em Nuremberg o que pensava do papel da criação artística, de olho a um só tempo no futuro de suas ideias e na desconsideração de seu trabalho no passado: “Não é missão da arte chafurdar-se na imundície pela imundície, pintar o ser humano apenas em estado de putrefação, desenhar cretinos como símbolos da paternidade ou apresentar idiotas deformados como representantes da força viril”.

A BELEZA DO SIMPLES - A mulher nua de Picasso, de 1921: banalidade
A BELEZA DO SIMPLES - A mulher nua de Picasso, de 1921: banalidade (Jens Ziehe/SMB/bpk/Nationalgalerie, Museum Berggruen/.)

Tanta estupidez seria depois estampada como dístico numa das paredes de uma exposição em Munique que faria história pela porta dos fundos: a mostra de “arte degenerada”, inaugurada em julho de 1937, a Entartete Kunst, na expressão em alemão. Naquela antologia, cerca de 600 trabalhos exibiam o que os nazistas consideravam lixo. Eram obras preferencialmente de judeus e comunistas, de pioneiros do abstracionismo e dos expressionistas do movimento Die Brücke (A Ponte). Era infame — e, infelizmente, fez imenso sucesso de público e crítica. Mais de 2 milhões de pessoas circularam entre as salas e os corredores em meio a telas expostas de maneira torta e luzes inadequadas, em iniciativa que viajaria por outras cidades, ganhando com o passar do tempo novos exemplares. O conceito de “degenerescência” foi emprestado da história natural, ao designar seres da fauna e da flora modificados pelo acasalamento, impuros. Defendia-se, enfim, a pureza da arte como quem bradava pela raça ariana.

E se fosse possível testar, hoje, as reações do mundo a uma antologia como a proposta por Hitler e sua turma? Eis a ideia de L’Art Dégénéré — Le Procès de L’Art Moderne sous le Nazisme (A Arte Degenerada — O Processo da Arte Moderna durante o Nazismo), no Museu Picasso, em Paris, até 25 de maio. Destacam-se, entre 57 obras de 37 artistas, trabalhos de George Grosz (Metrópolis, de 1916, alegoria do caos urbano), Pablo Picasso (com uma mulher nua cutucando o pé esquerdo, de 1921) e Kandinsky (uma abstração geométrica em forma de cruz, de 1926). Há ainda Marc Chagall, Paul Klee e esculturas de Emy Roeder. As peças fazem parte do acervo de museus europeus, inclusive o Picasso — lá reunidas, agora, não pela degeneração, evidentemente não, mas para provocar incômodo ao levar os visitantes ao chumbo dos anos 1930 e início dos 1940. Descobre-se que os nazistas tinham bom gosto — mas ao avesso, por ideologia.

IRREALIDADE - A cruz geométrica de Kandinsky, de 1926: desconstrução
IRREALIDADE - A cruz geométrica de Kandinsky, de 1926: desconstrução (Hanna Neander/LWL-Museum für Kunst und Kultur, Westfälisches Landesmuseum, Münste/.)
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O resultado, em 2025, é a condenação do absurdo, não há dúvida. É um modo de denunciar aquele episódio inaceitável, símbolo de um tempo que não pode mais voltar. É incômodo, também, ver a exposição parisiense — a primeira do gênero em um país em permanente desconforto com o período do colaboracionismo com Hitler, na chamada República de Vichy — em tempo de retomada de gestos nazistas, como os insinuados recentemente por Elon Musk e Steve Bannon, antigo conselheiro de Donald Trump, e de crescimento da extrema direita na eleição legislativa da Alemanha.

ABOMINÁVEL - Adolf Hitler em 1937, na vernissage de Entartete Kunst: horror
ABOMINÁVEL - Adolf Hitler em 1937, na vernissage de Entartete Kunst: horror (Congress/Corbis/VCG/Getty Images)

É difícil que aquela desventura renasça, mas é sempre bom iluminá-­la para que não se repita. E é bom estar atento a posturas inaceitáveis, como a de apontar o dedo para a arte que pode ser aceita e a que deve ser rechaçada. As telas e esculturas “degeneradas” expostas nas pequenas salas do Museu Picasso escancaram esse tipo de autoritarismo, ao revelar a capacidade humana de errar. Vale lembrar uma frase do pintor polonês Jankel Adler, do tempo em que Munique serviu de palco para o abominável: “Estamos sendo confrontados com o perigo iminente da destruição de toda liberdade”. Estava certo.

Publicado em VEJA de 14 de março de 2025, edição nº 2935

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