Em ‘Mestre dos Batuques’, Agualusa apresenta o outro lado da Angola
O angolano dá novo desfecho a conflito que marcou seu país — enquanto narra um amor proibido com toques de fantasia
Em um passado não muito distante, uma nação dominada por Portugal lutou para se livrar de sua pesada herança colonial e se estabelecer como uma pátria autônoma, com voz e lugar no mundo globalizado. Sim, o Brasil poderia se encaixar nessa breve descrição, mas o país em questão é Angola, na África. É lá que se desenrola a história de Mestre dos Batuques, o mais recente livro do angolano José Eduardo Agualusa, 63 anos. Nascido em Huambo, principal cidade da região central angolana, o escritor retorna à terra de sua origem para narrar a Revolta do Bailundo.
A guerra teve seu período mais beligerante entre 1902 e 1904; e foi o maior conflito armado em solo africano até então, opondo o outrora poderoso Reino de Portugal ao reino africano de Bailundo e seus aliados, habitantes do planalto central de Angola (a independência da nação só se deu muito tempo depois, em 1975). No enredo do livro, porém, as cenas de batalha são poucas. Agualusa vale-se da fulminante história de amor entre o tenente Jan Pinto e Lucrécia Van-Dunem para elaborar um “falso romance histórico”, de acordo com o próprio autor, criando um paralelo entre as agruras do casal e a realidade na qual estavam inseridos.
Agualusa é mestre em misturar elementos históricos com ficção e uma pitada de fantasia. Nesta obra, ele acerta ao deixar o conflito como pano de fundo, posicionando outras questões mais prementes no palco principal. O militar Jan Pinto é angolano e branco, descendente dos bôeres que colonizaram a África do Sul e se espalharam pelas nações vizinhas. Lucrécia é uma jovem da elite da capital, Luanda, filha de um comerciante negro que enriqueceu com fazendas de café brasileiro. Morando em Lisboa desde a adolescência, em 1902, Jan é convocado para voltar à Angola e se infiltrar no reino revoltoso. Cria local, ele é fluente em umbundo, a língua falada no Reino Bailundo. Em Luanda, ele retoma contato com Lucrécia, que tinha conhecido brevemente na capital do reino português.
O romance entre um branco e uma negra não era visto com bons olhos pelos europeus da época, um período ainda mais racista que os dias de hoje. E é por meio da história de amor do casal que o autor aborda temas como identidade e pertencimento, subvertendo estereótipos reducionistas e ideias preconcebidas. Ao mesmo tempo, ele expõe a brutalidade e as contradições da colonização portuguesa em Angola.
Se na história oficial o Reino Bailundo foi derrotado e subjugado por Portugal, no livro de Agualusa ele é vencedor e trilha um caminho próprio mítico, com fortes bases ancestrais. “É uma realidade paralela, já não é a história como nós a conhecemos, é a história de um outro universo”, afirmou o autor a VEJA. Ele acrescenta dizendo que sua obra é uma “distopia” para “mostrar como a colonização de Angola é muito mais complexa do que aquilo que se aprende nos livros de história”. Mas, ao mesmo tempo que o autor tece sua distopia, resgata passagens históricas que soam ficcionais de tão inusitadas. Como o caso dos comerciantes portugueses brancos que foram capturados e escravizados pelo Reino Bailundo durante o conflito. Por medo ou descaso, a administração colonial portuguesa não se dispôs a resgatá-los. A missão coube a um rico comerciante angolano negro, António Cosme, que comprou os escravos brancos do rei africano e os libertou. Poliglota e muito culto, Cosme explica sua ação: “Um ato justo não precisa ser justificado”. Essa passagem ilustra bem o grau de complexidade das relações sociais na Angola colonial.
A parte fantasiosa do enredo é desenvolvida a partir de um batalhão nativo composto de percussionistas, seus tambores e ritmos que provocam alucinações em seus oponentes levando-os ao suicídio ou à loucura. O regente dessa tropa é Henjengo, o Mestre dos Batuques. O cargo existe de verdade e faz parte da complexa corte africana — o Reino Bailundo foi restabelecido e existe até hoje, funcionando como um braço administrativo do governo angolano e representado pelo rei Tchongolola Tchongonga Ekuikui VI. Na obra, as responsabilidades do Henjengo eram numerosas: “Cabia-lhe não apenas selecionar os melhores batucadores e escolher os ritmos adequados a cada ocasião, mas também organizar festas, conduzir tropas”. Agualusa mescla história e ficção, fantasia e realidade, para criar uma narrativa poderosa, que atravessa todo o século XX junto com os descendentes de Jan e Lucrécia. Seu Bailundo reinventado resgata a força das tradições nativas míticas que foram esmagadas pelos colonizadores. Orgulhosos, mas não vingativos, o reino e seus habitantes são musicais, líricos, mágicos. “Aquilo que hoje chamamos de realismo mágico já estava em Angola. A nossa realidade tem muitos elementos fantásticos”, diz o escritor. Ele captura tal atmosfera e a transforma em um livro. Isso também é uma forma de magia.
Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2024, edição nº 2919