Despedida de Daniel Craig expõe desafio de reinventar James Bond
Em '007 — Sem Tempo para Morrer', ator e se livra de vez do passado machista e bruto do personagem, dando ao espião uma nova chance no século XXI
O agente secreto James Bond padece de duas fraquezas notórias: mulheres e bebida — de preferência, um bom dry martini. Valendo-se de ambas, uma beldade flerta com o bonitão em uma casa noturna na Jamaica. Pouco depois, está na casa dele perguntando onde fica o quarto. O que viria a ser uma cena quente típica dos filmes do 007 se revela uma pegadinha: a tal beldade é Nomi (Lashana Lynch), nova agente do MI6, a inteligência secreta britânica — antigo emprego de um Bond agora aposentado. A presença feminina fulgurante de Nomi, que o encara de igual para igual, provoca choque: o 007 do século XXI está acostumado a mulheres fortes, mas não tão equiparáveis a ele. “O mundo mudou desde que você se aposentou”, diz a moça, irônica. Na visão do veterano, porém, o mundo não mudou sua essência: sempre existirão vilões megalomaníacos, armas de destruição em massa e civis indefesos em perigo. Para ele, a natureza humana é previsível, mas o mesmo não pode ser dito das adaptações e surpresas pelas quais passa para continuar lutando contra esses males em 007 — Sem Tempo para Viver (No Time to Die, Reino Unido/Estados Unidos, 2021), novo filme da franquia e último com Daniel Craig no alinhado terno do herói inglês, já em cartaz nos cinemas.
Aos 53 anos, Craig marca sua despedida como o mais longevo ator no papel — foram dezesseis anos — e responsável por injetar energia no personagem, dando a ele camadas emotivas em uma realidade desiludida no pós-11 de Setembro. Nesse mundo de constante desconfiança no próximo e nas instituições, mudanças impensáveis nos tempos dos antecessores de Craig o empurraram, inevitavelmente, para o clima do século XXI. O ator corporificou o Bond da sociedade globalizada e hiperconectada, com tecnologias em constante evolução — e, mais recentemente, imerso no mundo da nova onda feminista e do movimento #MeToo.
E como essas mudanças fazem diferença. Na década de 60, o 007 de Sean Connery (1930-2020), primeiro a assumir o papel, não via problemas em agarrar à força uma mulher que negava suas investidas. Também não se importava com diplomacia ao escorraçar a União Soviética na Guerra Fria. A urgência da atualização ficou evidente nos anos 90, quando Pierce Brosnan entregou bilheterias aquém do esperado. Em um mea-culpa, a chefona M (vivida por Judi Dench) o chamou na época de “machista e dinossauro misógino”.
Essa descrição irretocável tem origem, vale lembrar, na pena de Ian Fleming (1908-1964), criador do personagem nos anos 50. Estereótipo da masculinidade, o agente — além de rematado cafajeste — dispunha de um “kit macho” com tecnologias avançadas, carrões, armas, valentia inabalável e ainda licença para matar em nome do governo britânico. Tal modelo ficou não só ultrapassado: já beirava o constrangimento. Era, sobretudo, um entrave que distanciava Bond de um novo público, especialmente jovens entregues aos super-heróis da Marvel. Ao mesmo tempo, porém, reinventá-lo muito radicalmente poderia afastar seu fã mais velho cativo. A estratégia de sobrevivência se revelou marota: mudar é preciso, mas só um pouquinho.
É uma mudança pelas bordas, digamos. “Personagens como a agente vivida por Lashana desafiam Bond, fazem com que ele se adapte”, explicou Craig a VEJA. Comparado aos demais, seu James Bond é o que mais bebe, mata e desobedece às autoridades. Ao mesmo tempo, é o que mais se livrou da virilidade tóxica: ele se apaixona perdidamente, chora sem pudores e sangra, literalmente, como poucos antes dele. “Daniel Craig deu outra dimensão ao personagem”, disse a empoderada Lashana a VEJA (leia abaixo).
Sem Tempo para Morrer entrega a despedida esperada, com uma dose extra de emoção e romance. Ao longo de quase três horas, o filme esbanja ação, mas há também diálogos existenciais entre o herói e um novo vilão desfigurado (Rami Malek). E, claro, locações exóticas e mulheres lindíssimas. As ex-bond girls (termo aposentado por seu cunho machista) agora têm força e poder — a cubana Ana de Armas luta e dispara fuzis sem amassar o vestido sensual. Mas o novo protótipo feminino que fica de legado da era Craig é mesmo a personagem durona de Lashana. A especulação de que o próximo 007 poderia ser uma mulher (e negra) encontra nela uma tentadora interrogação. A conferir. O bruto tem licença para mudar — mas daí a trocar de sexo seria uma revolução.
“Gosto de imaginar uma 007 mulher”
A atriz inglesa Lashana Lynch, 33 anos, fala a VEJA sobre sua personagem, uma agente secreta, e o futuro do espião.
Como recebeu a notícia de que faria um filme do James Bond? Eu estava no teatro e, quando olhei o celular, havia dezenas de ligações perdidas. Pensei: aconteceu uma tragédia. Meus agentes me contaram a novidade. Quando caiu a ficha, notei quão maravilhoso é ser uma mulher negra e filha de jamaicanos em um papel dessa magnitude.
Em que sentido? Meninos crescem se espelhando em heróis como 007. Na infância, não via ninguém parecida comigo nas telas. Eu me espelhei, então, em pessoas fortes do meu convívio, como a minha mãe — aliás, ela deixaria o Bond no chinelo (risos). Parte do filme se passa na Jamaica. Poder mostrar minha cultura numa franquia tão grande é uma bênção.
Não era uma fã do espião? Só me interessei por ele com Daniel Craig, que deu outra dimensão ao personagem. Mas, quando eu era bebê, meu pai assistia aos filmes comigo no colo. Quem sabe eu decidi ali que faria um filme do 007?
Quando fez o teste, sabia que era para uma agente 00? Não. Cheguei a pensar que eu poderia ser a nova M, pois li diálogos dela. Mas, quando fiz o teste físico, notei que não seria uma personagem de escritório. Eu me considero fitness, mas esse filme foi um desafio corporal inexplicável.
A possibilidade de uma mulher no papel de 007 tem causado alvoroço. O que acha? Acho saudável existir a conversa. Há trinta anos, a hipótese não seria cogitada. Gosto de imaginar uma 007 mulher — e olho essa possibilidade de camarote.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2021, edição nº 2758
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