Desenhos de Kafka revelam lado menos ‘kafkiano’ do escritor
Faceta mais leve e solar do austríaco aparece em 150 ilustrações, pela primeira vez compiladas em livro publicado na Europa

Desde a publicação de A Metamorfose (1915) e dos póstumos O Processo (1925) e O Castelo (1926), o sobrenome do autor Franz Kafka (1883-1924) passou a designar um estado de angústia, ilogismo e mal-estar, patente na grande maioria de suas obras. Era de se esperar que o austríaco assumisse tal soturnidade “kafkiana” em outras áreas da vida – mas não é isso que 150 desenhos autorais, recuperados de um cofre de um banco suíço, revelam.
De traços leves e simples, as ilustrações, a serem publicadas em um livro na Alemanha no próximo dia 2, trazem um lado até então pouco conhecido de Kafka. “Descobrimos que ele costumava se envolver intensamente com as artes visuais”, disse Andreas Kilcher, um dos autores de Franz Kafka: The Drawings, uma coedição de sete países que trazem à luz, pela primeira vez, esse lado artístico do homem que metamorfoseou um caixeiro-viajante em uma barata gigante. O espírito desenhista do autor vem até com certa surpresa, já que ele afirmava que “judeus como ele” não eram pintores: “Não sabemos representar as coisas de maneira estática, sempre as vemos fluindo, em movimento”, escreveu certa vez.
Mas fato é que escrita e ilustração andaram lado a lado em sua carreira. Entre 1901 e 1907, Kafka se aventurou pelo ramo enquanto estudava Direito na Universidade Alemã de Praga, onde frequentou aulas de desenho e cursos de História da Arte. “Seus colegas na universidade tinham um interesse imenso por arte, que Kafka não apenas compartilhava, mas praticava com verdadeiro vigor. Era certamente mais do que algo marginal para ele”, disse Kilcher ao jornal britânico The Guardian. Longe de serem meros rascunhos, as imagens feitas por ele são povoadas por palhaços de pernas longas, homens parecidos com Charles Chaplin com chapéus-coco e acidentes a cavalo.


O lado soturno de Kafka também aparece. Em alguns desenhos, figuras humanas são retratadas como frágeis, enigmáticas, por vezes até com alguma característica animal ou com a cabeça descolada do corpo. “Estão em suspensão e movimento insólitos, liberados da força da gravidade”, escreve a filósofa Judith Butler, co-autora do livro. A própria sobrevivência dos desenhos também alude ao adjetivo “kafkiano”: em testamento de 1921, o austríaco havia pedido especificamente para o amigo Max Brod que destruísse todas as suas obras, de textos a desenhos. Mas Brod, felizmente, não cumpriu sua vontade, e inclusive se dedicou a recolher descartes de Kafka em cestos de papel. É graças a ele que sobrevive o legado de um dos autores mais influentes da história.
