Decisão judicial acirra guerra entre herdeiros de João Gilberto
Três anos após a morte do gênio da bossa nova, patrimônio centrado em milionários direitos autorais segue provocando uma disputa familiar barulhenta
Genial e genioso, o baiano João Gilberto (1931-2019) acumulou ao longo de quase noventa anos sucessos estrondosos e, em semelhante quantidade, polêmicas barulhentas em torno da sua intimidade. Nas últimas semanas de vida, o mestre da bossa nova encontrava-se sob interdição judicial e com os herdeiros em pé de guerra por um patrimônio centrado em milionários direitos autorais. Agora, são os filhos que antes batiam cabeça — o músico João Marcelo, a cantora Bebel Gilberto e Luísa Carolina, de 18 anos — que se unem contra a moçambicana Maria do Céu Harris, autora de uma ação para ser confirmada como companheira e beneficiária do músico. Maria do Céu fincou pé no ringue no fim de junho, quando a 18ª Vara de Família do Rio de Janeiro reconheceu a união estável do casal em caráter liminar e determinou a reserva de 50% da herança para ela até que seja julgado o mérito da ação. João Marcelo e Luísa já ingressaram com recursos contra a decisão judicial.
O imbróglio remonta a 1984, quando Maria do Céu, hoje com 59 anos, conheceu o cantor durante um show em Portugal. Logo depois, ela veio para o Brasil e não mais voltou, pondo em marcha uma longa relação repleta de idas e vindas. Para provar a vida a dois, Maria, que nunca trabalhou, apresentou extratos de contas conjuntas, fotos, despesas de viagens, comprovantes de residência e até menções ao seu nome como “companheira” do artista nas redes sociais de João Marcelo — que este alega ser jeito de falar. Moraram juntos em algumas ocasiões e viviam sob o mesmo teto quando ele morreu, no célebre apartamento do Leblon — imóvel que Maria só desocupou em agosto de 2021, por força de uma ação de despejo e dívida com aluguéis de mais de 200 000 reais.
Para pôr fim à pendência, um acordo na Justiça vai determinar um novo valor a ser pago, mas sabe-se que ela, agora vivendo no interior do Rio, não tem como pagar. O filho mais velho de João Gilberto refuta com veemência a tese de união estável. “Ela nunca foi esposa dele nem era mais sua namorada. Maria é uma garimpeira, apenas procurando dinheiro”, dispara João Marcelo. “Meu pai só a deixava ficar nos apartamentos dele porque cuidava de seus gatos e comprava maconha para ele na favela”, acrescenta. Procurado, o advogado de Maria do Céu, Roberto Algranti, não se pronunciou.
Recluso, controverso e sedutor, o gênio do banquinho e violão foi casado com Astrud Gilberto, mãe de João Marcelo, depois com Miúcha, com quem teve Bebel, e se relacionou com a empresária Claudia Faissol, mãe da caçula. Na ofensiva contra o reconhecimento de Maria do Céu como participante do espólio, a advogada Deborah Sztajnberg, que representa o filho do compositor, está reunindo provas com as quais pretende anular o argumento de que ela foi companheira dele por 35 anos. “Todo mundo sabe que João teve várias namoradas ao longo da vida. Já contamos com sete testemunhas que acompanharam a rotina dele, entre elas uma pessoa muito famosa”, garante. O advogado Leonardo Amarante, que representa a filha caçula, alega que o músico, antes de se afundar em dívidas, pagava as contas de Maria do Céu “por humanidade”.
A união dos irmãos contra a presença de Maria no palco das desavenças familiares não acabou com os conflitos entre eles. João Marcelo, que vivia às turras com Bebel na época da interdição do pai mas parece ter posto essa pendenga em ponto morto, segue levantando questões contra Luísa — levantando, inclusive, dúvida se ela é realmente filha de João Gilberto. “Claudia roubou uma fortuna do meu pai e conseguiu enganá-lo, fazendo-o pensar que Luísa era sua filha, para roubar mais”, dispara, alegando que o músico tinha uma hérnia escrotal não tratada e não conseguia manter relações sexuais. “A menina foi registrada como filha de João pelo próprio. Quanto ao outro devaneio, de que Claudia roubou milhões, só posso explicar invocando grave doença mental do João Marcelo. Não há diálogo com loucos varridos”, rebate o advogado Amarante.
Como se não bastasse o espinhoso entrevero entre os herdeiros, o inventário de João Gilberto ainda tromba com a indefinição sobre o montante dos direitos autorais em jogo. O grosso vem de uma indenização envolvendo antiga disputa judicial em torno de seus álbuns de maior sucesso. O valor já foi estimado em cerca de 200 milhões de reais, caiu para 18 milhões e aguarda nova perícia. “Hoje, os advogados dos herdeiros trabalham juntos para que tudo seja resolvido o quanto antes”, limita-se a afirmar Maria Isabel Tancredo, representante de Bebel Gilberto. Atrelado ao inventário, o clã também enfrenta ainda processos de promotores de shows por sucessivos bolos do artista — um novelo de encrencas que, pelo visto, está longe de se desenrolar.
Publicado em VEJA de 17 de agosto de 2022, edição nº 2802