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Dalton Trevisan, o autor anti-Instagram que fez da reclusão sua filosofia

Avesso a entrevistas e aparições públicas, o escritor curitibano privilegiou sua obra, não sua pessoa — algo raro hoje em dia

Por Diego Braga Norte
Atualizado em 11 dez 2024, 10h28 - Publicado em 10 dez 2024, 16h17

E lá se vão 52 anos desde que o escritor Dalton Trevisan concedeu sua última entrevista formal, em agosto de 1972. Aos 47 anos e já com uma obra consolidada e reconhecida, ele disse ao jornal Estadão frases como: “O escritor é um ser maldito. O escritor é uma pessoa que não merece confiança. Um amigo chega e conta as maiores dores: eu escuto com atenção, mas estou é recolhendo material para mais um conto. E eu sei disso na hora”. E ainda deu a pista que sairia de cena: “Muitas vezes, esse conhecimento sobre a vida particular do autor relega a própria obra a um segundo plano. Eu não sou assunto, o autor nunca é assunto. Notícia é a sua obra. Ela pode ser discutida, interpretada, contestada”.

O resto é história. Trevisan, que morreu nesta segunda-feira, 9, aos 99 anos, tornou-se avesso à imprensa e às aparições públicas, não deixava ser fotografado e cultivou em torno de si mesmo a fama que lhe rendeu o epíteto, o Vampiro de Curitiba — título do livro homônimo publicado em 1965, uma de suas pequenas obras-primas. Ele não abandonou sua escolha nem quando recebeu o Prêmio Camões, o mais importante em língua portuguesa, em 2012. Não compareceu à cerimônia em Lisboa, foi representado por uma de suas editoras. O autor desapareceu aos olhos do público, mas não sumiu. Cultivou amizades em encontros privados, telefonemas e centenas (talvez milhares) de cartas. Sua opção foi estética, não um ato antissocial de alguém inepto para a convívio em sociedade. Privilegiou a força de obra em detrimento da devoção ao autor.

Em uma época pautada pelas redes sociais, altamente midiática e de culto às celebridades (quando não com as celebridades cultuando a si mesmas), muitos autores entraram nesse jogo. Eles mantêm suas redes muito ativas, participam de inúmeros eventos e feiras, escrevem newsletters, indicam leituras e interagem com seus leitores. Não há aqui nenhum juízo de valor, mas apenas a constatação de duas opções distintas. Enquanto alguns aparecem para divulgarem suas obras, Dalton Trevisan escondeu-se para fortalecer a sua — e o reflexo disso foi a criação de um modus vivendi que muito contribuiu para dar publicidade aos seus livros.

Sua maior inspiração para afastar-se foi, claro, o americano J. D. Salinger (1919 – 2010), autor de O Apanhador no Campo de Centeio. Trevisan admirava tanto os livros como o estilo de vida de Salinger, talvez o escritor recluso mais famoso da literatura mundial. Da obra do americano, o curitibano admirava suas frases enxutas, o constante uso da oralidade, das palavras simples e das gírias, além do vigor juvenil que imprimia em seus personagens. Salinger escreveu boa parte de sua obra em uma cabana no campo sem aquecimento, sem água corrente e sem banheiro. Trevisan também teve sua própria cabana em uma área rural próxima da capital paranaense, mas desistiu da aventura por causas das dificuldades logísticas para ir e voltar.

A saída encontrada foi construir um refúgio em seu quintal. Em sua casa na Rua Ubaldino do Amaral, número 487, numa esquina movimenta no centro de Curitiba, o Vampiro gostava de escrever numa edícula que mandou construir no amplo quintal. O mobiliário resumia-se a uma cadeira, uma mesa e a máquina de escrever. Sua casa era modesta, mas o terreno era enorme. Uma área de 1 780 metros quadrados, com galinheiro e mais de 30 cedros plantados pelo escritor. As árvores formavam uma cortina natural barrando olhares curiosos e garantiam sua privacidade.

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Dalton Trevisan morou lá de 1953 até 2021, quando mudou-se para um apartamento no mesmo prédio de sua amiga, editora e assistente Fabiana Faversani. Hoje é ela quem cuida da reedição de sua obra, que no ano que vem vai deixar a editora Record para ser publicada pela Todavia. Desde a estreia em 1945, com Sonata ao Luar, ele publicou mais de 50 livros de contos e antologias. Foi traduzido para o espanhol, inglês, alemão, sueco, dinamarquês, polonês e holandês. É admirado por muitos escritores que se derretem diante da aparente simplicidade e potência de sua obra.

O argentino César Aira, frequentemente cotado ao Nobel, é seu fã. Em uma entrevista, ele contou que em 2003 escalou o muro da casa de Trevisan em Curitiba para tentar, ao menos, ver o autor. “Como o muro não era muito alto, consegui subir e espiar”, recorda Aira. “A grama estava bem cortada e havia um homem. Eu o vi por apenas um momento. Seria o Dalton? Ou o jardineiro? Eu nunca soube”, disse ele. “Admiro sua prosa absurda, antídoto para tanto barroquismo inútil, sua desconfiança no casamento e seu amor pela humanidade”, elogia.

“Mestre do conto curto e cruel”

Coube ao crítico literário Antonio Candido, mago da concisão e do didatismo em seus escritos, fazer uma das melhores definições da obra de Trevisan: “mestre do conto curto e cruel, criador duma espécie de mitologia da sua cidade de Curitiba”. O trecho está no ensaio A Nova Narrativa, de 1979.

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Ao longo de sua carreira, Trevisan trabalhou como um artesão, lapidando, polindo, e reduzindo sua obra. Toda vez que relia seus textos, ele os encurtava. Seu objetivo era a concisão precisa e vigorosa. Nesta toada releu, cortou e reeditou inúmeros de seus mais de 700 contos. A crítica e professora da USP Berta Waldman, autora de Do Vampiro ao Cafajeste — Uma Leitura da Obra de Dalton Trevisan, destaca que para o autor, reescrever é um “gesto vital”. “O vampiro não está só no plano do conteúdo, mas no próprio procedimento literário. O gesto vital de Dalton é o procedimento da repetição”, escreve ela em seu livro. “O vampiro ganha vida, evitando a morte, reedição após reedição, sugando/abusando mais de seus supostos cadáveres: os textos já publicados”, complementa.

A crítica também posiciona o autor dentro da pop art, pois ele “rouba uma linguagem – a imagem comum fabricada pelos meios de comunicação de massa –, também nos fornece a repetição e realiza uma obra dentro de um idioma propositalmente descuidado, que requer a habilidade de trabalhar com os recursos da linguagem e da paisagem da cultura popular”. Sua concisão meticulosa, seu vocabulário propositalmente simples e suas opções temáticas privilegiando a vida urbana e conjugal indicam que o vampiro tinha método e metas, sabia exatamente o que estava fazendo.

Coerente até o fim

Apesar de ter mantido contratos com grandes editoras, Trevisan jamais deixou de cultivar seu lado outsider. De 1949 até o ano passado, ele publicou de forma independente e em tiragem muito reduzida os seus famosos “cadernos”. Hoje objetos cobiçados por pesquisadores e literatos, os cadernos são uma espécie de fanzine impressos em pequenas gráficas de Curitiba. Eles têm, em média, 50 páginas em papel sulfite dobrado ao meio. Neles o autor republicava seus contos com ilustrações de seu acervo pessoal.

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Durante décadas ele publicou mais ou menos uns seis cadernos por ano, que eram distribuídos gratuitamente em universidades, bibliotecas, bares e cafés de Curitiba. Alguns amigos recebiam os mimos pessoalmente ou pelo correio. Em 2014, ano em que parou de escrever textos inéditos, ele passou a editar seus cadernos com pequenas antologias de contos unidos por algum tema em comum.

Em 2023 ele publicou, também de forma independente, a antologia Gente de Curitiba, reunindo 69 contos. Os 350 exemplares evaporaram das livrarias de Curitiba. Também no ano passado, ele reabilitou seu primeiro livro, Sonata ao Luar, obra que ele renegava e proibia sua reedição. Fiel ao seu estilo underground, escolheu uma pequena editora da capital paranaense, Arte & Letra. Com tiragem reduzida, os livros, que não eram publicados desde 1945, esgotaram-se em uma semana.

Paralelamente aos seus contratos com grandes editoras, as edições independentes de seus cadernos e livros mostram um autor ciente de seu trabalho e engajado em sua postura estética. Tal consciência da própria obra e do que ela representa é algo raro de se encontrar em qualquer área das artes. Dalton Trevisan foi um artesão das palavras e da própria carreira.

Fiel aos amigos, manteve, desde a década de 1940, uma intensa correspondência com Otto Lara Resende (1922 – 1992), Rubem Braga (1913 – 1990), (1935 – 2012), Antonio Candido (1918 – 2017), dentre outros. Fiel aos seu ofício como escritor, saiu de cena para deixar no palco a sua obra, não o culto à sua personalidade. Antes de abandonar a vida pública, declarou em sua última entrevista: “Quero ser julgado pelo que escrevo e não pela maneira como vivo, pelo jeito que durmo, pelo que eu gosto de comer no almoço. O que interessa saber mais?”. Fiel aos seus leitores, deixou sua obra. Ela basta.

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