Como a ciência desvenda mistérios das obras-primas de Van Gogh e Da Vinci
Pesquisadores se valem de armas como análises químicas, GPS e até inteligência artificial
Durante a pandemia de covid-19, museus de todo o mundo fecharam as portas para os visitantes. Enquanto os salões do Getty Museum, em Los Angeles, estavam vazios e sem perspectiva de reabertura, as curadoras Devi Ormond e Catherine Patterson tiveram uma oportunidade única: a de tirar da parede o quadro As Íris (1889), de Van Gogh (1853-1890), e observá-lo sob o olhar preciso de um microscópio. “Estávamos interessadas em entender se houve mudança de coloração na pintura”, explicou Ormond a VEJA. Conduzida por Catherine, formada na área de físico-química, a investigação minuciosa se estendeu por anos e acabou trazendo à luz outras revelações. Seus resultados serão apresentados ao público em uma mostra que entrará em cartaz no Getty só em outubro, mas já vem dando o que falar.
A parceria entre arte e ciência remonta a vários séculos, quando artistas como Leonardo da Vinci (1452-1519) e Michelangelo (1475-1564) se dedicavam à dissecação de cadáveres e ao estudo de cores e tintas. Nos últimos anos, curiosamente, a situação se inverteu: agora, é a ciência que se debruça sobre a arte, com o objetivo nobre de entender o trabalho dos mestres do passado, ajudar na conservação de suas obras e decifrar alguns de seus mistérios. Para isso, diversos museus têm investido em departamentos científicos, e há instituições voltadas exclusivamente para esse fim, como o Centro para Pesquisas Científicas na Arte, parceria entre a Universidade Northwestern e o Instituto de Arte de Chicago. Nessa espécie de CSI dos pincéis, tesouros de Da Vinci, Rembrandt (1606-1669), Frans Hals (1580-1666) e Rafael (1483-1520) já foram colocados sob a lupa da ciência — que trouxe ao mundo informações preciosas.
Van Gogh: A Vida – Steven Naifeh e Gregory White Smith
No caso das inconfundíveis Íris de Van Gogh, a dúvida era sobre a cor real das flores pintadas pelo holandês: parte do jardim do hospital psiquiátrico no qual ele foi enclausurado, na França, elas são descritas por ele, em cartas ao irmão Theo, como de matiz violeta, mas hoje exibem no quadro um tom de azul. A resposta veio das lentes do microscópio: “Notei uma pequena rachadura na pintura, e por baixo de camadas de tinta havia um tom de roxo preservado. Foi a primeira vez que tivemos uma evidência física da cor descrita por Van Gogh”, conta Catherine. A partir daí, a cientista aplicou uma série de técnicas avançadas, como o uso de raio X fluorescente — que detalha os elementos químicos presentes em uma superfície — para determinar como, afinal, a mudança aconteceu. Houve também uma ajudinha do próprio Van Gogh. “Ele escrevia ao irmão pedindo suprimentos. Nessas listas tinha uma tinta vermelha extremamente sensível à luz”, conta Devi, explicando que o pintor misturou o pigmento ao azul para criar o roxo das flores — o que foi determinante para a cor que vemos hoje. “O vermelho desbotou com a exposição à luz, e apenas o azul permaneceu”, aponta ela. De quebra, a pesquisa revelou outro dado curioso: as cientistas detectaram a presença de pólen misturado à tinta. Esse material biológico corresponde ao de pinheiros que existem ainda hoje no jardim do hospício no interior da França, onde Van Gogh passou seus últimos dias.
Cartas a Theo – Vincent van Gogh
Nem só de microscópios e raio X de última geração, no entanto, se vale a ciência. Geóloga e historiadora da arte, Ann Pizzorusso se dedica há décadas ao estudo geológico de Leonardo da Vinci. Em investigações de campo na região de Lecco, na Lombardia, detectou a correlação da geografia local com a obra-prima do mestre, apontando recentemente a área como o possível cenário enigmático da Mona Lisa (1503). Segundo ela, a ponte ao fundo da obra — que, por muito tempo, foi tida como peça-chave para identificar o cenário da pintura — não pode ser considerada de maneira isolada, já que havia centenas delas espalhadas pela Itália. “É preciso analisar a geologia”, opina Ann, lembrando que Da Vinci esteve na região e que, tanto em Lecco quanto na Mona Lisa, há “rochas calcárias de cor branco-acinzentada” e lagos glaciais com formação peculiar, “que se assemelham a dedos alongados”. Além do trabalho de campo e da análise das descrições do pintor, a geóloga explica que, hoje, também é possível se beneficiar de tecnologias como o GPS. “Temos o Google Maps e mapas de relevo tridimensionais. Então, podemos coordenar a pintura com a tecnologia moderna de um modo muito preciso”, atesta ela.
Leonardo da Vinci – Walter Isaacson
Objeto de adoração e mistério, a Mona Lisa já foi submetida a outros escrutínios. No ano passado, um estudo que usou raio X e luz infravermelha revelou que Da Vinci misturava óxido de chumbo ao óleo para obter uma tinta espessa e de secagem rápida. A mesma técnica foi usada anos depois pelo holandês Rembrandt, como revelou uma pesquisa anterior. Numa vertente menos laboratorial, a inteligência artificial também tem sido utilizada para vasculhar quadros. Em 2021, o próprio Rembrandt teve as pinceladas reproduzidas por um algoritmo que aprendeu a copiar seu traço e recriou a parte perdida de A Ronda Noturna — o quadro foi cortado no século XVIII para caber na parede da prefeitura de Amsterdã. Mais recentemente, no início deste ano, um grupo de pesquisadores desenvolveu um algoritmo para estudar pinturas de Rafael. A ferramenta apontou que a maior parte da Madonna della Rosa (1518), exposta no Prado e sobre a qual pairam desconfianças acerca da autoria, teria sido realmente pintada pelo mestre renascentista — com exceção do rosto de São José, que não coincide com o traço do artista.
Mona Lisa: A mulher por trás do quadro – Dianne Hales
Em alta no mundo, a união de arte e ciência está presente também no Brasil. Entre 2021 e 2022, o Masp desenvolveu um projeto de restauro das obras do holandês Frans Hals em seu acervo. Ambiciosa, a iniciativa foi acompanhada por um comitê científico internacional para que a restauração fosse feita com materiais próximos aos originais. Importante relembrar, ainda, o caso da clássica tela Independência ou Morte (1888), de Pedro Américo, que passou por análises de infravermelho, raio X e outras técnicas que permitiram resgatar as cores originais da obra. Vista pelo novo olhar da ciência, a arte é uma caixinha de surpresas.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2024, edição nº 2903