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Com ‘Hamlet’, Thiago Lacerda mora na metafísica

‘Enquanto ator, preciso descobrir o meu personagem’, diz em entrevista em que fala sobre o processo preparatório para o clássico de Shakespeare, em cartaz em SP, condena a vaidade e defende a simplicidade. ‘Eu quero fazer pão’

Por Mariana Zylberkan
Atualizado em 10 dez 2018, 11h10 - Publicado em 4 nov 2012, 15h12

Thiago Lacerda entrou de cabeça – e no papo-cabeça – para estrelar Hamlet, o clássico shakespeariano que ganhou nova montagem no Tuca, em São Paulo, sob a direção de Ron Daniels, um especialista na obra do dramaturgo inglês. A primeira e mais evidente transformação do ator para viver o atormentado personagem de Shakespeare é o corte de cabelo assimétrico. Foi o próprio Lacerda que tesourou as madeixas, em um ritual para encarnar o papel. “Eu gosto de pensar que, no auge do luto pela morte do pai, Hamlet se mutila.” O novo penteado, “mais comprido atrás, meio hare krishna”, segundo o ator, é apenas um dos indícios de sua entrega ao papel. “O cabelo não é qualquer parte de nosso corpo, ele representa um momento em que rolam uma série de coisas”, diz o ator, que embarca na onda existencialista e filosófica da peça para falar do novo trabalho, da carreira e do ofício de atuar.

ANÁLISE: Thiago Lacerda faz ‘Hamlet’ com seriedade

“Enquanto ator ou artista, preciso descobrir o meu Hamlet”, diz Lacerda. Com o espetáculo, ele amplia a galeria de personagens épicos do currículo. Há quatro anos, o ator esteve em cena no papel como o excêntrico romano Calígula, da peça de Albert Camus, em montagem de Gabriel Villela. E, antes, em 2003, estreou como ninguém menos que Cristo na adaptação do romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, dirigida por José Possi Neto. Mais tarde, voltaria a viver Jesus na Paixão de Cristo.

A presença de tantos heróis no portfolio é vista com prazer pelo ator, que enxerga nesses trabalhos um retorno à infância. “Talvez seja um resquício do desejo infantil de escutar histórias fantásticas”, diz. “É um cultivar da criança que ainda existe.” A dimensão dos personagens, no entanto, não assusta Lacerda, que procura não pensar demais na responsabilidade nem se deixar tomar pela vaidade de vivê-los. “Pretendo manter uma distância segura desse pecado perigoso”, afirma. “Acredito piamente na simplicidade do meu ofício. Eu quero fazer pão.”

Leia a seguir a entrevista concedida pelo ator ao site de VEJA.

Como tem sentido a reação do público diante do espetáculo? Na estreia, a gente confirmou a suspeita de que a simplificação do texto proporciona um acesso incrível à história. O público entende o enredo facilmente. Tivemos plateias diversas, os jovens da Febem (que, na verdade, hoje se chama Fundação Casa) e pessoas que iam ao teatro pela primeira vez.

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Antes de Hamlet, você interpretou Calígula. Por que essa fileira de textos clássicos na carreira? É verdade. No teatro, mais que na televisão, eu tenho um encontro com esses personagens épicos. Antes de Calígula, eu encenei O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago. São personagens que têm uma trajetória heroica, clássica e, ao mesmo tempo, épica. Mas esses trabalhos aconteceram naturalmente, não foram opção minha, apesar de eu gostar muito deles. Eles chegaram por convite, eu só matei no peito. Se parasse para analisar a dimensão e a responsabilidade que vêm junto com esses papéis, talvez eu nem os aceitasse.

https://www.youtube.com/watch?v=flyot6OmM-s

O que atrai tanto você nesses personagens? As histórias me atraem. Geralmente, esses personagens são permeados de detalhes interessantes e conflituosos, o que abre possibilidades e caminhos fascinantes. Eu sinto prazer em transportar o público para o universo dessas histórias ricas, repletas de nuances, que mostram a ascensão e a queda, o surgimento e a morte, a ideia da renovação, da passagem não linear das coisas. São personagens maravilhosos, que encerram uma pesquisa às vezes histórica, às vezes comportamental. Falar de heróis, de piratas, isso tudo é estimulante. Talvez seja um resquício da minha infância, um desejo infantil de escutar histórias fantásticas. É um cultivar da criança que ainda existe aqui.

Como é o Hamlet construído por você? Eu já vi essa história diversas vezes da plateia, mas não posso me valer disso. Enquanto ator ou artista, preciso descobrir o meu Hamlet. E esse personagem é meu, não é do Diogo Vilela, do Wagner Moura, do Laurence Olivier nem do Jude Law. Eu já brinquei de estudar as diferenças nessas interpretações e me livrei delas, nem lembro mais o que de um ou de outro eu trouxe para o meu Hamlet. Tampouco tenho pretensão de inventar algo, porque, com certeza, o que eu faço alguém já fez ou pensou em fazer. Simplesmente pelo fato de não me preocupar com isso é que ele se torna o “meu” Hamlet.

Por que fez uma diferenciação entre ator e artista? O artista está nos olhos do público e o ator é um contador de histórias, é um cara que está ali para fazer o pão. Essa frase é do Ronaldo Daniel (Ron Daniels, diretor de Hamlet) e acredito piamente na simplicidade do meu ofício. Eu sou um contador de histórias. A beleza de Hamlet está nos olhos e nos ouvidos do público. Não posso ter a pretensão de entrar em cena e achar que eu vou fazer o melhor Hamlet do mundo. Eu quero ser simples. Quero fazer pão.

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Essa postura é rara no meio artístico, não? É tão triste ver uma figura entregue à vaidade. A vaidade é uma grande cilada, precisamos mantê-la sob controle o tempo todo. É claro que eu a tenho também, mas ela se manifesta pelo meu desejo de estar bem em cena, de contar bem uma história e me cercar de recursos para acessar o público. Quero terminar Hamlet e fazer um personagem à altura dele, na televisão, no teatro ou no cinema. Pretendo manter uma distância segura desse pecado perigoso.

Você espera que depois de Hamlet venham trabalhos mais consistentes? Eu sou muito feliz com a minha carreira. Todo trabalho é um marco, minha primeira atuação na TV (como Matteo na novela Terra Nostra, em 1999) realmente mudou a minha vida, foi a partir dali que tudo começou. Eu me dediquei ao Hamlet de forma profunda e radical, acredito que o resultado disso seja realmente transformador. Não tenho dúvida de que o Hamlet vai mudar a minha carreira, assim como o Calígula e o Matteo. Tive alguns pontos de transformação na minha carreira e o meu orgulho é ver que esses pontos estão cada vez um degrau acima, eu consigo conduzir a minha carreira para um lugar mais sólido, que me dá prazer. Ao mesmo tempo, a responsabilidade sempre aumenta quando surge um personagem dessa importância.

Thiago Lacerda na peça 'Calígula'
Thiago Lacerda na peça ‘Calígula’ (VEJA)

Qual é a história do seu novo penteado? Foi uma ideia minha que envolveu duas coisas. Primeiro, eu queria experimentar algo físico que me levasse ao personagem. Eu gosto de pensar que, no auge do luto pela morte do pai, Hamlet se mutila. O cabelo não é qualquer parte de nosso corpo, ele representa um momento em que rolam uma série de coisas. É um processo de desapego estético. Em segundo lugar, eu queria que o corte fosse feito por mim, como uma espécie de ritual para a peça. O resultado é algo estranho, não é para ficar bonito nem feio, serve para provocar um estranhamento nas pessoas, quero que elas pensem: “O que é aquilo? É cabelo branco, é buraco?” Não tinha pensado em fazer um moicano, a coisa foi rolando e ficou assim. Tem uma parte mais comprida atrás, parece um hare krishna.

A cena famosa do “ser ou não ser, eis a questão” foi tratada de modo diferente? Nós temos uma ideia clara de que o espetáculo é simples. Para mim, o Hamlet está doente. É um menino que não sabe para onde correr. No momento do “ser ou não ser”, tentamos passar essa sensação de fragilidade do personagem. Queremos mostrar que esse menino está doente, sente uma profunda solidão com a morte do pai e tem ciúmes da mãe, que a seu ver se comporta mal. Ele não sabe o que fazer com a missão proposta por um fantasma que ele nem sabe se existe ou não. No final, ele faz suas escolhas e precisa assumir as consequências.

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