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Cama, mesa e pop

Duplas formadas por marido e mulher representam um ensaio de revitalização da indústria musical brasileira em um momento de esgotamento do sertanejo

Por Sérgio Martins | Fotos Paulo Vitale
Atualizado em 4 jun 2024, 16h22 - Publicado em 16 nov 2018, 07h00

Dois anos atrás, Isa Salles foi chamada às pressas para uma apresentação do grupo capixaba de rock Supercombo, em substituição à vocalista Negra Li, que tivera um imprevisto. Deu tão certo que o cantor e guitarrista Léo Ramos — aparentemente, sem segundas intenções — convidou Isa para um café. Um mês e meio depois, a dupla tinha engatado um namoro, tudo registrado — como convém a todo romance contemporâneo — nas redes sociais. Nascia então o Scatolove, cujo trabalho de estreia, Lei de Muffin, chegou às plataformas virtuais em abril. São doze canções, entre baladas e rocks inspirados na sonoridade inglesa, que tratam de amor e de certa inadequação ao mundo moderno.

Casais que compõem e cantam juntos têm larga tradição na música popular internacional — estão aí os exemplos de Sonny & Cher, Johnny Cash & June Carter ou, mais recentemente, Jay-Z e Beyoncé. No Brasil, Rita Lee emplacou vários hits ao lado de Roberto de Carvalho, nos anos 80. Mas fazia tempo que não se via surgir tantas duplas fora do sertanejo (em que as parcerias são, para usar fora de contexto uma das expressões desagradáveis do futuro presidente, “casamentos héteros”). Além do Scatolove, pelo menos outros quatro casais se encaixam no formato “cama, mesa & pop”: Kyber Krystals, formado por Lucas Silveira (do Fresno e do Beeshop, projetos de alta rotação no universo alternativo) e Karen Jonz; Gus & Vic, de Gustavo Scanferla e Victoria Cosato; Benziê, de Du Pessoa e Victoria Conegero; e Loly Coffee, de Fernando Sanches e Carox Gonçalves. São duplas de estilos distintos, que vão do pop mais escancarado à surf music, da MPB ao rock alternativo.

Eduardo Pessoa e Vic Conogero
PARCERIA TURÍSTICA – Pessoa e Victoria, do Benziê: viagem paga com música (Paulo Vitale/.)

Tal como aconteceu com Isa e Ramos, o relacionamento dessas duplas quase sempre envolveu a música. Gus & Vic se conheceram num karaokê cantando músicas dos Backstreet Boys, em 2013. “Nosso destino estava escrito e se materializou naquela noite”, decreta Victoria Cosato. A parceria, porém, só tomou forma dois anos depois. Du Pessoa descobriu a sua Victoria (Conegero) na internet. “Eu me encantei com um vídeo dela cantando uma música de Criolo”, lembra. “Quando seu parceiro é seu amor, tudo fica mais fácil porque você rema na mesma direção atrás de um sonho em comum”, diz a cara-metade de Pessoa no Benziê. Silveira e Karen, do Kyber Krystals, estão juntos há seis anos. Ele é vocalista e guitarrista da banda Fresno; ela é skatista profissional mas já fazia eventuais trabalhos com música. Foi só há um ano e meio que começaram a cantar juntos. Em tom de piada, Silveira diz que até aceitaria traições da esposa, pois “o que importa mesmo é que ela faz harmonias como ninguém”. Carox, parceira de Sanches no Loly Coffee, credita a um novo espírito dos tempos a liberdade com que mulheres hoje se associam a seus companheiros em projetos musicais: “Antigamente, se você formasse uma banda com o namorado, achavam que era ele quem dava uma força na sua carreira. Isso mudou”. Ela é, por sinal, a principal compositora da dupla.

O projeto mais ambicioso dessa leva é o Kyber Krystals — nome que trai a alma nerd do casal: re­fere-se aos cristais que fazem funcionar os sabres de luz da série Star Wars. Os cinco singles de Karen e Silveira são um estudo apurado do cancioneiro pop. “Tudo é válido: do reggaeton a Christina Aguilera. Mas nada é feito para emplacar propositalmente”, diz Karen. Silveira traz para o casamento sua experiência à frente do Fresno, grupo que esteve nas paradas durante o auge da popularidade do emo, estilo de rock mais sensível (ou choroso, segundo os detratores). “Os grandes autores do pop são os emos de dez anos atrás”, anuncia. Em dezembro, o Kyber Krystals lança mais um single, Taking Back My Life (o casal canta sempre em inglês). Apesar da carreira bem consolidada de Silveira, seu projeto ao lado da mulher ainda não passou pelo teste do palco. A dupla pretende sair em turnê em 2019.

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Lucas Silveira (Fresno) e Karen Jonz
CASAL EMO – Karen e Silveira (que também canta com o Fresno) fazem o Kyber Krystals: letras em inglês (Paulo Vitale/.)

O inglês também é o idioma adotado por Gus & Vic em Savana, seu álbum de estreia, lançado em abril. Faz sentido que a dupla cante na língua dos Beach Boys: o som do Gus & Vic é uma versão atualizada do rock e da surf music dos anos 60, o que é muito apropriado para o único casal carioca dessa leva (todos os demais montaram suas bases em São Paulo). Gus & Vic declaram-se apaixonados, e ela até fez questão de exibir a aliança na foto que se vê abaixo. Mas eles não querem falar de amor em suas letras: “Nossa união musical tenta escapar do que é esperado das duplas de casal. Preferimos retratar outros assuntos e propostas”, explica Gus Scanferla. No fim deste mês, a dupla lança, nas plataformas de streaming, a gravação de um show com voz e violão. E já começa a trabalhar no segundo disco de canções inéditas, desta vez com letras em português.

Pelo menos em termos líricos, o Benziê navega em direção oposta à de Gus & Vic. As letras falam explicitamente da relação a dois. “Comprei uma casa amarela de frente pro mar / Com uma varanda para nossa ninhada brincar”, ouve-se em Casa Amarela, um dos singles mais doces do casal (que ainda não tem filhos: a ninhada, por ora, é só licença poética). As influências de música brasileira, em especial o pop dos anos 90, são mais explícitas que as dos seus pares, ligados sobretudo a referências internacionais. Pessoa gosta de O Rappa, Skank e Los Hermanos, e sua mulher adora Milton Nascimento e Marisa Monte. O resultado é um híbrido de reggae, pop e MPB — potencialmente, um som de apelo amplo. O curioso é que o talento conjunto do casal só foi despertado por uma fortuita circunstância turística. Os dois namoraram por um bom tempo antes de decidir formar a dupla. Dois anos atrás, durante uma viagem pela Colômbia, conseguiram pagar a hospedagem com shows em hostels que ofereciam atrações culturais. De volta ao Brasil, afinal gravaram Casa Amarela — que Pessoa havia escrito logo que conheceu Victoria. O Benziê assinou com o selo Midas, do empresário Rick Bonadio. No dia 29, chegam às plataformas virtuais as canções Vida Bonita e Meu Próprio Mundo.

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Sanches e Carox formam mais uma dupla que canta em inglês, o Loly Coffee. Estrearam com o single Recall no início de junho. Seu canal no YouTube traz, além dessa canção própria, releituras de grupos como o Paramore. A dupla ainda arrisca seus primeiros passos — e, atualmente, está se refazendo de uma perda: Joca, o gato de estimação do casal, acaba de morrer. O felino será devidamente homenageado no próximo single do Loly Coffee.

Gus & Vic
AO SOM DO MAR - A dupla Gus & Vic: os dois se conheceram cantando The Beach Boys e hoje fazem surf music (Paulo Vitale/.)

Os cinco casais chegam ao mercado num momento em que a fórmula do sertanejo dá sinais de esgotamento e o pop ensaia um crescimento, mesmo que tímido. O gênero tem visto fenômenos como o cantor Tiago Iorc e a dupla Anavitória, além de promessas como Jão — que faz um “popnejo” com alguns neurônios a mais — e o cantor e compositor Silva. Scatolove, Gus & Vic e Benziê vêm se apresentando esporadicamente para plateias atentas e participavas. Nos seus shows, Isa e Ramos, do Scatolove, ganham o reforço do baixista Edu Filgueira, que já integrou a banda Far from Alaska. Ainda estão limitados ao circuito alternativo de São Paulo, mas Isa já teve seus momentos em uma plataforma que alcança as massas: neste ano, foi uma das candidatas do The Voice, programa de calouros da Globo. Impressionou a plateia com sua interpretação de uma música da inglesa Jessie J., mas acabou eliminada. Embora tenha trazido visibilidade para a menina de flamante cabelo cor-de-ro­sa, a participação no The Voice deu uma emperrada no Scatolove: a emissora detinha a exclusividade das entrevistas da moça, o que dificultou o trabalho promocional do projeto que ela toca com o marido. Agora, a dupla trabalha em novas músicas, que espera lançar no ano que vem.

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Ainda não se ouvem esses grupos nas principais rádios do país. Mas talvez hoje a música de maior vitalidade tenha de ser garimpada nas plataformas de streaming e no YouTube. Cada um a seu modo, esses cinco casais mostram potencial para alcançar públicos mais amplos. Que o pop, como o amor, seja eterno enquanto dure.

Publicado em VEJA de 21 de novembro de 2018, edição nº 2609

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