Cacá Diegues em Cannes: ‘O cinema brasileiro nunca esteve tão bem’
Em mais uma passagem pelo festival, diretor fala sobre novo filme, a boa fase da produção nacional e o que ele pensa daquela polêmica entre Cannes e Netflix
É antiga a relação do cineasta Carlos Diegues com o Festival de Cannes, onde ele acaba de apresentar seu mais recente filme, O Grande Circo Místico. Nos anos 1980, o alagoano passou pelo Palais des Festival, sede do evento francês, três vezes na disputa pela Palma de Ouro. Depois, foi jurado e exibiu trabalhos em mostras paralelas. Neste ano, ficou fora de competição, mas com gosto de presente adiantado de aniversário — ele completa 78 anos no próximo sábado, dia 19. “Fiquei muito feliz. É uma homenagem. Mas a gente não pode transformar Cannes ou prêmios do Oscar no juiz supremo dos nossos filmes”, diz.
Para ele, resultado melhor que prêmios é a satisfação do público. Como aconteceu na sessão de lançamento do filme no festival, em que ele e os atores saíram aplaudidos. A produção de tom barroco e, como diz o título, místico, é inspirada no poema homônimo de Jorge de Lima, parte do livro A Túnica Inconsútil, de 1938. Nele, uma família circense vai do apogeu à decadência conforme os filhos lidam com o que foi atribuído a eles de herança.
Em conversa com VEJA em Cannes, o cineasta falou sobre a produção, como vê a atual produção cinematográfica brasileira e o que achou sobre a polêmica que fez o festival banir a Netflix.
Como o poema de Jorge de Lima entrou na sua vida e quando nasceu o desejo de fazer uma adaptação? Comecei a pensar neste filme há mais de dez anos. Sou um admirador antigo do Jorge de Lima, desde a adolescência. É um dos maiores poetas de língua portuguesa. Tenho uma grande intimidade com a obra dele, que, para mim, é a mais completa e complexa da literatura brasileira. Mas nunca pensei em fazer um filme do Jorge, pois achava muito difícil encontrar, num poeta barroco, alguma coisa que servisse ao cinema.
O que mudou? Nos anos 1990, o poema foi adaptado para um musical, um balé. Ouvi a trilha sonora e pensei, “É isso que vou fazer”. Foi depois de 2006 que comecei a escrever o roteiro. Mas só em 2014 preparamos as filmagens. Gravamos no começo de 2015, mas demoramos a lançar pois a parte de finalização foi complicada. Faltou dinheiro, tivemos que ir atrás de financiamento. Os efeitos especiais digitais não ficavam como eu queria. Só esse processo de finalizar levou dois anos e meio.
Estamos fazendo tudo de bom, em todas as linhas. A grande novidade do cinema brasileiro, para mim a mais importante, é a sua diversidade: regional, geracional, política, estética. O cinema nacional deixou de ser um gênero. Temos, dentro dele, todos os gêneros
É uma honraria, então, depois de um processo tão longo, estrear em Cannes? Foi muito bacana nos escolherem, gostei muito. Mas não podemos transformar Cannes ou prêmios como o Oscar no juiz supremo dos nossos filmes. Eles são importantes, pois abrem um circuito internacional para o longa. Mas o fato da produção ter sido escolhida para a seleção não é o que define a qualidade do filme. Isso quem decide é o público.
Existe, aliás, uma sensação de ressentimento pela ausência constante do Brasil no Oscar ou até aqui em Cannes, competindo pela Palma de Ouro. É bom estar nestes lugares, não se pode desprezar o sucesso de Cannes, do Oscar. Mas ressalto: não é o selo de qualidade de um filme. O cinema argentino teve uns três ou quatro filmes no Oscar nos últimos anos, e o Brasil não teve nenhum. E eu acho que o cinema brasileiro é muito melhor que o argentino.
O senhor foi um dos fundadores do movimento do Cinema Novo. Vê algo no Brasil de hoje que lembra aquele período? Eu acho que o cinema brasileiro nunca esteve tão bem. É muito bom. Não é que eu seja otimista, só vejo a realidade. Quando eu fiz o meu primeiro filme, Ganga Zumba, de 1974, um dos títulos inaugurais do Cinema Novo, foram rodadas sete produções no Brasil naquele ano. Ano passado, fizemos mais de 160 filmes, todos bastante recomendáveis. Que vão do sucesso comercial até a descoberta de jovens cineastas interessantes. Temos produções como Aquarius, um filme de qualidade, que competiu pela Palma de Ouro, e temos também Minha Mãe É uma Peça, que fez não sei quantos milhões de ingressos. Estamos fazendo tudo de bom, em todas as linhas. A grande novidade do cinema brasileiro, para mim a mais importante, é a sua diversidade: regional, geracional, política, estética. O cinema nacional deixou de ser um gênero. Temos, dentro dele, todos os gêneros.
O Festival de Cannes e a Netflix estão trocando farpas desde o ano passado, que levou a uma discussão sobre o que é cinema. Se é só aquilo que passa nas salas, ou o que também se vê no streaming. Qual sua opinião? Acho toda essa conversa uma bobagem. O cinema é o avôzinho de uma família de audiovisual que nasceu em 1895, quando os irmãos Lumiére inventaram a tecnologia. Desde então, tudo tem mudado. O cinema era preto e branco, ficou colorido. Era mudo, se tornou falado. A Netflix, o VOD, o streaming, é uma nova mudança. Plataformas digitais são o futuro. Não tenho a menor dúvida quanto a isso. Não significa que a sala de cinema vai acabar. É só mais uma forma de mostrar o trabalho. Hoje, quando faço um filme, não faço só para a sala de cinema. Eu penso em exibir no cinema, na televisão, na TV aberta, na fechada, em DVD. Tudo o que tiver. Um grande cineasta não vai deixar de ser um gênio porque seu filme será visto na Netflix. Porém, precisa-se regular essas plataformas. Elas não podem só entrar no país sem dar valor à cultura brasileira, à economia do audiovisual nacional. Como uma invasão, um neocolonialismo feito através do cinema. Eu quero que meus filmes passem para o maior número de pessoas possível. Se isso for na Netflix, o que é que tem?