As obras de arte salvas da guerra na Ucrânia para brilhar no Louvre
Exposição lança luz sobre o desafio de preservar legado cultural durante conflitos armados
Na manhã do dia 10 de outubro de 2022, a cidade de Kiev, capital ucraniana, foi alvo de uma série de ataques russos. Um dos mísseis caiu a 40 metros do Museu Nacional de Artes de Bohdan e Varvara Khanenko, danificando janelas e partes de seu interior. Felizmente, o local estava precavido: uma das instituições culturais mais importantes do país, o Khanenko retirou seu acervo do prédio histórico no início da guerra, escondendo obras diversas que datam desde a Idade Média em um lugar seguro. Nos últimos meses, dezesseis dessas pérolas foram transportadas do esconderijo ucraniano até a França, em uma operação minuciosa e repleta de sigilo. “Elas deixaram o museu Khanenko no dia 10 de maio e chegaram ao Louvre no dia 15, atravessando a Polônia e a Alemanha sob escolta militar”, explicou a VEJA Maximilien Durand, chefe do Departamento de Arte Bizantina e Cristã Oriental do Louvre, e curador da mostra As Origens da Imagem Sagrada: Ícones do Museu Nacional de Artes de Bohdan e Varvara Khanenko de Kiev.
The Louvre: The History, The Collections, The Architecture
Em cartaz até 6 de novembro no museu francês, a mostra antecipa o que está por vir no novo e aguardado Departamento de Artes Bizantina e Cristã Oriental do Louvre, que deve ser aberto ao público em 2027. Resgatadas da zona de guerra, as obras em exposição compreendem um conjunto de quatro ícones produzidos entre os séculos VI e VII, e provenientes do mítico Mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai, Egito. Produzidas com a técnica encáustica, que usa cera para preservar os pigmentos pintados na madeira, as pinturas retratam figuras religiosas recorrentes na arte sacra, como os santos Sérgio e Baco e a Virgem Maria com o Menino Jesus. Também está em exposição um pequeno mosaico que data do século XIII, com a representação de São Nicolau. Feito a partir de pequenas tesselas de metais como cobre, ouro ou prata, vidro colorido e pedrarias aplicadas sobre a madeira, o modelo é um exemplar raro da técnica antiga: estima-se que apenas cinquenta unidades tenham restado em todo o mundo. “É um conjunto que ilustra a herança clássica na fundação da civilização bizantina e a relação altamente original com as imagens que ela introduziu e que caracterizam a expressão artística no cristianismo oriental”, esclarece Durand sobre as cinco obras expostas.
A mostra foi possibilitada graças a uma parceria tripla entre o Louvre, a Aliança Internacional para a Proteção do Patrimônio em Áreas de Conflito (Aliph) e o Museu Khanenko, que trabalharam juntos para viabilizar a logística de transporte das peças. Agora em exibição para o público, o projeto é um exemplar bem-sucedido dos esforços de proteção ao patrimônio cultural ucraniano, que tem sido ameaçado desde a invasão russa, em fevereiro do ano passado. Segundo um relatório recente da Unesco, a guerra já soma um prejuízo de 2,6 bilhões de dólares (12,7 bilhões de reais na conversão atual) em patrimônios culturais e cerca de 260 monumentos danificados, incluindo 22 museus, além de cidades, edifícios, locais históricos, instalações turísticas, bens culturais móveis e coleções. De acordo com uma estimativa da diretora-geral do órgão, Audrey Azoulay, será necessário um montante de 6,9 bilhões de dólares para colocar em prática um plano nacional de reconstrução do setor cultural no país.
Enquanto isso não acontece, as obras transportadas para a França devem permanecer no Louvre, por meio de um empréstimo em moldes tradicionais entre o museu e o Ministério da Cultura Ucraniano. “Vai durar até que a guerra termine”, explica Durand. A ideia, agora, é que as obras expostas e as demais peças, guardadas em segurança no acervo do Louvre, passem por uma série de estudos em parceria com o Museu Khanenko, que tem como objetivo dar visibilidade à arte e ao patrimônio ucraniano.
Diário de uma jovem na Guerra da Ucrânia
O Louvre, inclusive, tem seu próprio passado de resistência. Dez dias antes da II Guerra Mundial, o então diretor do museu, Jacques Jaujard, mandou que evacuassem o local. Ciente do fascínio de Hitler por obras de arte e antecipando uma invasão alemã, ele liderou a operação que salvou mais de 4 000 tesouros dos saques nazistas, incluindo a Mona Lisa. Retiradas em caminhões, as obras passaram a guerra escondidas, e sobreviveram para ver de novo a luz do dia. Que as belezas resgatadas da Ucrânia tenham a mesma sorte.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2023, edição nº 2850
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