Black Friday: Revista em casa a partir de 8,90/semana
Continua após publicidade

As lições dos grandes mestres para atravessar tempos difíceis de pandemia

A literatura, a arte e a música sempre ofereceram consolo e expuseram verdades sobre o ser humano — e ainda têm muito a ensinar hoje

Por Eduardo Wolf
Atualizado em 4 jun 2024, 14h20 - Publicado em 27 mar 2020, 06h00
CARAVAGGIO-1276
LUZ E SOMBRAS - A pintura de Caravaggio: o sublime em meio à peste (Salvatore Laporta/LightRocket/Getty Images)

A Ilíada, de Homero, certidão de nascimento da literatura ocidental, costuma ser evocada por seu herói, Aquiles, e pelas histórias sobre a Guerra de Troia descritas na obra, com quase três milênios de existência. No entanto, ainda nos primeiros versos do poema, é uma personagem pouco lembrada que desencadeia a trama: uma doença que assola as hostes gregas, enviada pelo deus Apolo para vingar seu sacerdote, Crises, que tivera a filha tomada pelo chefe da expedição helênica, Agamemnon. Já na abertura do poema fundador de toda a tradição literária lá estava ela: a peste. Um tema que por muito tempo pareceu tão distante do mundo moderno quanto as tramas da Ilíada — e, com o coronavírus, volta à ordem do dia.

O-Triunfo-da-Morte
VELHAS LIÇÕES –  Triunfo da Morte, de Bruegel: fragilidade humana (DeAgostini/Getty Images)

Diante da pandemia da Covid-19, tem sido comum recorrer a comparações com filmes distópicos sobre epidemias. A verdade é que, ao longo dos séculos, a literatura, a arte e a música produziram obras que examinam o tema com alcance mais profundo e atemporal. Os grandes mestres confrontaram o homem com a própria fragilidade e o atordoamento em face de um poder desconhecido. Nas situações-limite das pandemias, eles desnudam o melhor e o pior da natureza humana. Mais que isso, a beleza e a intensidade dos livros, das imagens e das melodias produzidos em tais condições trazem consolo e servem de guia para atravessar esses períodos.

+ Compre o livro A Peste, de Albert Camus
+ Compre o livro Ilíada, de Homero
+ Compre o Box Decamerão, de Giovanni Boccaccio
+ Compre o livro A Morte em Veneza, de Thomas Mann
+ Compre o livro Nêmesis, de Philip Roth

Não é por acaso que uma das mais célebres obras associadas ao assunto ilustra como as pessoas devem se portar ante uma epidemia. O Decameron, de Giovanni Boccaccio, escrito entre os anos 1348 e 1353, é produto desse esforço de compreensão e consolação. Boccaccio retornara à sua cidade natal, Florença, quando a peste negra consumia enorme parcela da população de lá — seu pai e amigos morreram. No início da obra, Boccaccio exibe uma Florença devastada: o abandono na doença, os mortos abundantes e o sofrimento sem fim e sem sentido que tolheu mais de 100 000 vidas. “Que mais se poderá dizer a não ser que a crueldade dos céus foi tal e tanta”, lamenta o florentino.

1500
DESESPERO - A Pietà de Ticiano: o artista morreu durante epidemia (DeAgostini/Getty Images)
Continua após a publicidade

Não foram poucos os artistas que, inspirados por Boccaccio, deixaram imagens lapidares da peste que matou perto de 50 milhões de pessoas na Europa, na Ásia e na África no século XIV. A pavorosa cena dos corpos insepultos descrita no Decameron marcaria a pintura europeia. No imponente quadro Sete Obras de Misericórdia (1607), Caravaggio retrata uma caridade cristã fundamental: o ato de sepultar as vítimas das doenças. No tumulto dos corpos submetidos ao jogo de luz e sombras, sobressaem ao fundo homens carregando um defunto.

bocaccio
CONFORTADOR –  Boccaccio: aula de como se portar numa quarentena (Stock Montage/Getty Images)

A natureza arbitrária e avassaladora da peste, que tornaria a dizimar a Europa nos séculos seguintes, aguçou a percepção da fragilidade humana. A imagem da morte como a grande ceifeira jogando xadrez com um cavaleiro cruzado é de um simbolismo poderoso, quer em uma célebre ilustração do século XV do sueco Albertus Pictor, quer no marco do cinema O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, que se inspirou nessa imagem para seu clássico filme de 1957. Possivelmente, nenhuma obra eternizou o tema apocalíptico de forma mais singular que Triunfo da Morte (1562), em que o flamengo Bruegel, o Velho, descortina as cores da “terra desolada” sob o domínio dos exércitos da morte.

camus
HUMANISTA - Camus: a coragem
de ser verdadeiro e ajudar os doentes (Bettmann/Getty Images)

Com a mesma beleza com que expõe a condição mortal dos homens, a arte inspirada pelos momentos de pestilência também eleva à espiritualidade, solene ou singela, que define o que é ser humano. Na Veneza de 1549, Jacop­po Tintoretto pintou San Rocco Risana gli Appestati, retratando num grandioso painel a óleo o santo padroeiro dos inválidos e protetor contra a peste. Outro gigante veneziano, Ticiano Vecellio, elaborou uma tristíssima Pietà no último ano de sua existência. No quadro, o artista roga desesperadamente pela própria vida, bem como pela de seu filho, durante a epidemia que devastou a cidade em 1576. Ticiano, lamentavelmente, não sobreviveu.

Continua após a publicidade
philip-roth
TRÁGICO – Philip Roth: narrativa assombrosa de um surto de pólio (Taylor Hill/WireImage/Getty Images)

Nem sempre nossas preces são atendidas, é fato. Ainda assim, precisamos delas — ou de algo que ocupe seu lugar. Morte em Veneza (1912), do alemão Thomas Mann, faz da pérola italiana o ambiente perfeito para a história de Aschenbach, célebre escritor que visita a cidade e se deixa fascinar pela beleza e pela juventude de um jovem polonês, Tadzio, que passa as férias com a família no mesmo hotel. O avanço da cólera sobre a cidade e o mergulho de Aschenbach em um devaneio estético e erótico forneceram também ao cinema algumas de suas mais poderosas cenas, como aquela em que o protagonista, interpretado por Dirk Bogarde, surge caído em uma Veneza abandonada no filme dirigido em 1971 por Luchino Visconti. Que Visconti tenha transformado o personagem em um compositor é apropriado: desde o século XIV, a música fora influenciada pela peste, quer com as obras sacras, quer com madrigais, mostrando as nuances dos efeitos da doença sobre o homem.

O consolo, em última instância, vem das virtudes terrenas. Para Boccaccio, ele é obtido da nobre atividade de contar histórias para entreter os amigos em uma quarentena. Já para Albert Camus, em A Peste (1947), autoconhecimento e conforto vinham entrelaçados, e eram indissociáveis, ambos, da coragem de ser verdadeiro. Na história do jovem médico Bernard Rieux e daqueles que o cercam em Oran, na Argélia, quando a peste bubônica irrompe, ser capaz de salvar o próximo é mais que um gesto de heroísmo — é como estar à altura de nós mesmos, seja qual for o preço a pagar. Pode ser o de ficar confinado numa cidade que sofre com a peste e tentar salvar o maior número de vidas. Pode ser o da culpa, como acontecerá nas páginas da última obra publicada pelo americano Philip Roth, Nêmesis (2010), que narra a trágica história de um jovem durante o surto de pólio em Newark, em 1944. Pode ser o da raiva e do desespero, como na Sinfonia Nº 1, composta pelo americano John Corigliano em memória aos mortos da epidemia de aids. Ou, ainda, ser o preço de ficar a sós e encontrar forças para enfrentar os medos e angústias, por nós e pelos outros. Na nova pandemia, que a arte mais uma vez eduque e console.

Publicado em VEJA de 1 de abril de 2020, edição nº 2680

Continua após a publicidade

CLIQUE NAS IMAGENS ABAIXO PARA COMPRAR

As lições dos grandes mestres para atravessar tempos difíceis de pandemiaAs lições dos grandes mestres para atravessar tempos difíceis de pandemia
A Peste, de Albert Camus
As lições dos grandes mestres para atravessar tempos difíceis de pandemiaAs lições dos grandes mestres para atravessar tempos difíceis de pandemia
Continua após a publicidade

Ilíada, de Homero

As lições dos grandes mestres para atravessar tempos difíceis de pandemiaAs lições dos grandes mestres para atravessar tempos difíceis de pandemia
Box Decamerão, de Giovanni Boccaccio
Continua após a publicidade
As lições dos grandes mestres para atravessar tempos difíceis de pandemiaAs lições dos grandes mestres para atravessar tempos difíceis de pandemia
A Morte em Veneza, de Thomas Mann
As lições dos grandes mestres para atravessar tempos difíceis de pandemiaAs lições dos grandes mestres para atravessar tempos difíceis de pandemia
Nêmesis, de Philip Roth
logo-veja-amazon-loja

*A Editora Abril tem uma parceria com a Amazon, em que recebe uma porcentagem das vendas feitas por meio de seus sites. Isso não altera, de forma alguma, a avaliação realizada pela VEJA sobre os produtos ou serviços em questão, os quais os preços e estoque referem-se ao momento da publicação deste conteúdo.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Semana Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (a partir de R$ 8,90 por revista)

a partir de 35,60/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.