As honestas reflexões do americano James Baldwin sobre identidade e raça
Extraordinário talento da literatura contemporânea, ele tece reflexões sobre identidade pessoal e a condição negra num corajoso volume de ensaios
“Não gosto de pessoas que gostam de mim porque sou negro, nem de gente que me despreza por essa mesma característica acidental. Amo os Estados Unidos mais que qualquer outro país do mundo e, justamente por isso, insisto no direito de criticá-lo com frequência.” O autor dessa incisiva nota autobiográfica tinha apenas 31 anos quando a redigiu para a abertura de sua primeira coletânea de ensaios, Notas de um Filho Nativo, publicada em 1955. Dois anos antes, seu romance de estreia (Go Tell It on the Mountain, ainda inédito no país) prenunciava uma voz incontornável da literatura de seu tempo. Quando da publicação (precoce) de sua não ficção, seu segundo romance, O Quarto de Giovanni, não só já estava pronto, como fora rejeitado, expondo uma característica da vida e da obra de seu autor, James Baldwin: não há classificação, estereótipo ou esquematismo que possam dar conta de seu gênio artístico. Nem de sua força moral.
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Os dez ensaios que compõem Notas de um Filho Nativo dão testemunho disso. Em textos publicados originalmente entre 1948 e 1955 em veículos como Commentary, Harper’s Magazine e Partisan Review, o jovem Baldwin encara com radical honestidade a tarefa de examinar criticamente essa América que anunciava com franqueza amar e criticar em igual intensidade. E compreender a América era lidar com sua identidade. Era esse imperativo que impunha a Baldwin, por meio de sua consciência aguçada e sua sensibilidade única, revirar o passado, a história e as tradições que constituíam a experiência moral dos seres humanos que o cercavam e que o haviam precedido nas terras dos Estados Unidos. Decifrar esse enigma — essa identidade própria — não é, no entanto, simples tarefa de crítica social: o leitor sente nessas páginas a vida de Baldwin, sua condição como ser humano e como escritor, pressionada pelas urgências de seu meio e de seu tempo, pelo peso da história, mas também abrindo espaço para elevar-se e conquistar uma renovada liberdade.
Já na abertura do livro, Baldwin afirma: “Se escrevo tanto sobre a condição do negro, não é por achar que não tenho outro assunto, mas só porque foi esse o portão que me vi obrigado a destrancar para que pudesse escrever sobre qualquer outra coisa”. Do relato de viagem de seu irmão a Atlanta com um quarteto de jovens cantores, temerosos dos riscos de enfrentarem o sul racista segregado, à intensidade vital com que narra a morte de seu pai e a vida no Harlem, passando pelas vigorosas e independentes críticas à literatura negra de protesto produzida então, Baldwin sempre enfrenta o desafio do racismo em toda a sua complexidade: o reconhecimento dos ódios assassinos, a aceitação da frustração violenta e as consequências deformadoras que essa relação iníqua acarreta.
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É assim que a identidade americana, a condição negra e a identidade pessoal se entrelaçam, dolorosa e corajosamente, nos relatos de Baldwin. Em momentos brutais, como quando se vê reagindo com irreconhecível fúria a uma garçonete em Nova Jersey que se recusa a servi-lo, ou apocalípticos, como nos intensos conflitos raciais que estouram no Harlem no dia da morte de seu pai, em 1943, ou simplesmente reflexivos, divagando em uma aldeia suíça sobre sua condição, Baldwin encontra sempre a voz certa, a identidade verdadeira, a razão humana: “seu centro moral próprio para viver neste mundo”. As notas deste filho nativo morto em 1987, aos 63 anos, têm um eco particular para todos os filhos de um tempo em que as mesmas dores mostram sua permanência. Suas lições, no entanto, vão além. “Quero ser um homem honesto e um bom escritor”, escreveu. Um centro moral próprio, como Baldwin encontrou, é a única identidade que é inescapável.
Publicado em VEJA de 30 de setembro de 2020, edição nº 2706
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